Exposição no MAG e livro de 300 páginas marcam seis décadas de Waldomiro de Deus
Artista baiano, ícone da arte naïf brasileira, ganha retrospectiva e livro que percorrem da infância pobre à consagração internacional, entre polêmicas, fé e irreverência
Waldomiro de Deus estava em seu ateliê em Goiânia quando recebeu a reportagem do jornal O Hoje. À mesa, caneta em punho, dedicava exemplares do recém-lançado Waldomiro de Deus – 60 anos de pintura, volume de 300 páginas organizado pelo crítico Enock Sacramento. O livro chegou ao público no inicio de setembro, mesmo dia da abertura da exposição homônima no Museu de Arte de Goiânia (MAG), em cartaz até domingo (14).
Após concluir as dedicatórias, o pintor puxou de arquivos guardados ao longo da vida recortes de jornais amarelados, catálogos e convites de exposições. “Carrego com muito orgulho tudo isso. Foram essas matérias que deram visibilidade ao meu trabalho”, disse, folheando exemplares da Folha de S.Paulo, do Estadão, de revistas como Veja, jornais estrangeiros e também deste. Abrir aquelas pastas era, para ele, revisitar a própria biografia.
Da fuga à descoberta da pintura
Nascido em 1944, Waldomiro cresceu entre deslocamentos e escassez. Adolescente, fugiu de casa e percorreu estradas em caronas até chegar à capital paulista. Foi em Perdizes, trabalhando como jardineiro de um antiquário italiano, que teve contato com pincéis e reproduções. À noite, pintava em cartolina cenas da infância — enterros, bichos, procissões. Incentivado por artistas, levou os trabalhos ao Viaduto do Chá. Vendeu os primeiros desenhos a turistas, ganhou nota na imprensa e logo foi conduzido por Rossini Tavares de Lima à Associação Brasileira de Folclore.
O passo seguinte foi decisivo: apoiado pelo decorador Terri Della Stufa, ganhou cavalete, telas e tinta a óleo. Apresentado a Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi, chamou atenção de Mário Schenberg, que escreveu no catálogo: “Provavelmente a maior revelação da pintura primitivista brasileira”. Vieram a primeira exposição individual na Galeria Directa, em 1965, e a participação em Propostas 65, na FAAP. No ano seguinte, 22 telas ocuparam a Galeria São Luís, com títulos de impacto como Não Há Mais Escravidão, Boca do Lixo e O Deus da Terra é uma Brasa.
No fim da década, abriu ateliê-showroom na Rua Augusta. Uma placa na fachada anunciava: “Waldomiro de Deus: Pintor”. Vendia diretamente ao público, oferecia parcelamento e citava críticas. Em paralelo, a atmosfera hippie da cidade inspirava telas que provocavam conservadores: Nossa Senhora de Minissaia e Jesus Cristo de Bermudas causaram escândalo, mas atraíram imprensa.Waldomiro relembra que a inspiração foi íntima e quase ingênua: “Minha mãe me deu uma imagem de Nossa Senhora e eu levei comigo para São Paulo. Quando estava pintando, vi umas meninas muito bonitas andando de minissaia na Rua Augusta. Achei estilosas e quis colocar no desenho. Depois veio toda a repercussão, mas eu fui ingênuo. Não pensei em provocar ninguém”.
O artista participou da IX Bienal de São Paulo e viveu uma incursão no cinema como pintor hippie no filme Finis Hominis, de José Mojica Marins. Em 1969, partiu para Paris e expôs na Galerie Antoinette. Passou a circular entre Europa e Oriente Médio. Em Jerusalém, na Via Dolorosa, viveu experiência que o levou à conversão ao Cristianismo, mudança visível em títulos e temas da fase seguinte. Casou-se em 1976 com Maria de Lourdes da Hora, com quem teve seis filhos, dois deles também pintores.
Nos anos 1980, alternava entre Osasco e o ABC paulista, onde recebia políticos e jornalistas em seu ateliê. Em 1989, fixou-se em Goiânia, cidade que se tornaria seu porto definitivo. Nos anos 2000, foi consagrado na Mostra do Descobrimento – Brasil 500 Anos, com o painel A Travessia do Milênio. Tornou-se objeto de teses e livros, como Os Pincéis de Deus (Unesp).
Em nossa conversa, Waldomiro retomou a dureza da vida de pintor. Contou que, muitas vezes, precisou vender telas apenas para pagar contas, comprar comida ou quitar dívidas. O colecionador, lembra ele, revende a obra anos depois e comemora a valorização; o artista, por sua vez, guarda outra lembrança.
“Eu lembro da alegria daquela venda”, disse. “Era sair correndo para o mercado em Osasco. A Dona Celeste me vendia fiado. Quando eu conseguia vender um quadro, ia lá, pagava e ainda fazia a compra grande”.
A retrospectiva
Agora, Waldomiro revisita a própria caminhada. A exposição no MAG reúne desde os primeiros quadros folclóricos até santos modernizados, astronautas pop, cenas fabris e telas recentes, em que espiritualidade e cor se intensificam. O livro lançado em paralelo acrescenta densidade crítica, com ensaios, cronologia e imagens.
Sobre esse processo, Waldomiro recorda uma conversa com Sacramento: “Quando o Enock estava fazendo a pesquisa, eu mesmo disse para ele: é muita bagagem, não cabe em um só volume. Esse aqui devia ser só o primeiro. Precisava ter o dois e o três”.
Aos 81 anos, Waldomiro mantém o mesmo ritual de trabalho. “Eu pinto todos os dias”, disse. “Para concluir uma obra, normalmente demoro de 12 a 15 dias. Cada quadro tem seu tempo, como se fosse uma vida que nasce ali na tela”.
E, antes da despedida, fez questão de sublinhar em voz alta o que carrega também nas telas:
“Meu trabalho é simples, mas toca o ser humano, e nunca com maldade. O mundo precisa valorizar o que tem de melhor, que é a nossa terra. Eu gosto de trazer coisas boas, que alegrem este país. O Brasil é cada vez mais abençoado, mais amado. É uma fonte de luz que resplandece pelo universo afora, trazendo um calor que transforma o coração do homem, enche de beleza e grandeza. Viva o Brasil!”, disse, com a mesma intensidade que imprime nas cores.
À frente de sua última obra concluída, o artista mostra que não pintou apenas quadros — pintou o Brasil que viveu, viu e, de certo modo, também reinventou.

Serviço
Exposição: Waldomiro de Deus – 60 anos de pintura
Quando: até domingo (14)
Onde: Museu de Arte de Goiânia (MAG), Rua 1, nº 605 – St. Central, Goiânia
Horário: terça a domingo, das 9h às 17h
Entrada gratuita.