Antes de qualquer mudança, Rua 8 precisa de cuidados básicos, diz urbanista
Projeto busca transformar espaço em ponto cultural e de lazer, mas especialista alerta para infraestrutura precária, risco de elitização e falta de participação popular
A Rua 8, no coração de Goiânia, voltou ao centro do debate sobre a cidade. Conhecida pela cena cultural e pela arquitetura Art Déco, a via pode ganhar um calçadão em parte de sua extensão. A proposta busca transformar o espaço em um ponto de encontro para pedestres, artistas, comerciantes e turistas. Mas especialistas e moradores alertam: antes de pensar em festas e expansão comercial, é preciso arrumar a casa e resolver problemas básicos de infraestrutura e segurança.
O projeto é da vereadora Aava Santiago (PSDB), que protocolou uma proposta para fechar o trecho entre a Avenida Anhanguera e a Rua 4 aos domingos e feriados, liberando a passagem apenas para pedestres e bicicletas. A ideia é que o espaço seja ocupado com feiras, apresentações artísticas, atividades esportivas e culturais.
“Nosso objetivo é devolver a vida ao Centro, criar oportunidades de trabalho, valorizar o comércio e atrair novamente as pessoas para a região. O calçadão pode fortalecer a economia local e trazer orgulho aos goianienses”, disse.
O urbanista Fred Le Blue, doutor em Planejamento Urbano e Regional, no entanto, defende que a ordem deve ser outra. Para ele, sem um plano de revitalização, a iniciativa pode fracassar como tantas outras.
Em entrevista ao jornal O HOJE , o urbanista Fred Le Blue alerta que sem resolver problemas básicos, espaço pode repetir erros do passado no Centro de Goiânia
“Primeiro precisamos revitalizar. Sem calçadas adequadas, iluminação, segurança e limpeza, o espaço não se sustenta. Já vimos esse ciclo antes: abre-se espaço para o comércio, mas como não há estrutura, logo entra em decadência”, afirmou.
Fred também defende mais diálogo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e participação social real. “As consultas públicas são pouco acessíveis, mal divulgadas e repetitivas. Não faz sentido menos de cem pessoas decidirem o futuro de uma cidade de mais de um milhão de habitantes. Precisamos inverter a lógica: dar protagonismo aos moradores e não apenas aos comerciantes e incorporadores.”
Nos últimos anos, a Rua 8 recebeu bares, cafés e pequenos espaços culturais que surgiram de forma espontânea, ocupando imóveis antigos. A cena movimentou o Centro, mas, com o tempo, muitos desses lugares fecharam por falta de apoio do poder público, além disso, segundo o urbanista, por excesso de fiscalização.
“A cena era diversa e popular, mas acabou sufocada. Hoje, o que restou é mais elitizado e não representa todo mundo. Isso mostra que só boa vontade não é suficiente. É preciso planejamento e suporte”, completou Fred.
Outro ponto citado pelo especialista é a falta de gestão cultural. Ele lembra que, em uma das tentativas de fechar a rua para carros, houve vandalismo no Cine Ritz, um dos prédios históricos da região. “Isso mostra que não basta liberar a rua. É preciso organizar uma programação, criar curadoria, dar estrutura para artistas e, principalmente, ouvir a população que já vive ali. Sem isso, as mudanças ficam frágeis e perdem sentido”, explicou.
Além da questão cultural, há preocupação com a forma como os projetos para o Centro têm sido feitos. Em geral, são iniciativas isoladas, sem continuidade e sem diálogo com moradores e trabalhadores. Para Fred, esse modelo reforça a sensação de abandono e oportunismo político. “O problema não é ter ideias novas. O problema é fazer sem planejamento de longo prazo. A cidade não pode ficar refém de ações pontuais, que aparecem em épocas eleitorais e depois são esquecidas”, criticou.
Ele defende que uma das primeiras medidas deveria ser simples e simbólica: aplicar a Lei da Fachada Limpa, que prevê a retirada de tapumes e letreiros que escondem a arquitetura Art Déco. “Isso resgataria o orgulho dos goianienses e mostraria que a revitalização começou de verdade. É algo básico, mas que faria grande diferença na forma como as pessoas enxergam o Centro”, avaliou.
Outro ponto importante é a participação social. Hoje, as consultas públicas para debater o futuro do Centro têm pouca divulgação. “É comum termos menos de cem participantes. Isso não representa uma cidade com mais de um milhão de habitantes. Precisamos inverter a lógica: ouvir os moradores, os trabalhadores, os jovens que usam o espaço e não apenas empresários e incorporadores. O Centro precisa ser construído a muitas vozes”, disse Fred.
Apesar das críticas, o urbanista acredita que a Rua 8 pode, sim, se tornar uma referência de lazer e convivência em Goiânia. Mas isso depende de planejamento, diálogo e cuidado com a infraestrutura. Ele compara o que pode dar certo e o que pode dar errado. “A rua pode se tornar tão aconchegante quanto a Rua do Lazer em Pirenópolis, mas com preços acessíveis e vida real. O perigo é virar apenas uma vitrine bonita, sem resolver os problemas do dia a dia.”
Ao analisar o futuro da Rua 8 e as propostas de revitalização, especialistas destacam a importância de entender como as pessoas vivenciam o espaço urbano. Nesse sentido, o urbanismo não se limita ao desenho das ruas ou fachadas, mas envolve a interação entre moradores, visitantes e o ambiente construído:
“Em arquitetura existe sempre um embate ou diálogo, a depender do arquiteto, entre o projeto e o cotidiano, o ambiente construído e o vivido, porque o comportamento espacial depende tanto da estética e estrutura morfológica da arquitetura, quanto da representação e memória social associada ao lugar. Daí, a importância de pesquisas sociais antropológicas das pré-existências e pós-ocupações aplicadas ao espaço urbano, que permitam observar e ouvir a população que de fato usa ou vai usar um equipamento público.” Concluiu
Risco de elitização reforça necessidade de inclusão social no Centro
A discussão sobre o futuro da Rua 8 levanta um alerta importante sobre o risco de exclusão social no Centro de Goiânia. “Em muitas cidades, vimos o mesmo movimento: o espaço é valorizado, novos bares e comércios chegam, mas os aluguéis sobem e a população tradicional é empurrada para fora. Se Goiânia não cuidar disso, o Centro vai perder sua identidade e virar um lugar elitizado”, afirmou Fred.
Segundo ele, a tendência já pode ser sentida no espaço. “Hoje, boa parte do que restou são espaços elitizados, bares e restaurantes voltados para um público mais restrito. A cena cultural que era diversa e popular foi perdendo espaço por falta de apoio e pressão econômica”, continua.
Nos últimos anos, a Rua 8 ganhou destaque como um dos principais polos de lazer e cultura do Centro. O ambiente não é apenas um endereço comercial: tornou-se palco de encontros, criatividade e vivência urbana, como explica o especialista.
“A cena de bares da Rua 8, tanto a parte da Rua do Lazer, quanto a parte entre a Anhanguera e a Paranaíba (Nova Rua do Lazer), além do Beco do Codorna, se tornaram um espaço obrigatório de protagonismo da juventude goianiense, vindo de todas as periferias.”
O urbanista defende que a Prefeitura inclua medidas sociais no planejamento da revitalização. “Se queremos um Centro vivo, não podemos pensar apenas no comércio. É preciso garantir moradia acessível, transporte eficiente, segurança e programação cultural aberta a todos. Caso contrário, só os empresários saem ganhando.”
Fred lembra ainda que a Capital já registrou conflitos entre novos usos e moradores antigos. “A cena boêmia que surgiu na Rua 8 nos últimos anos foi combatida por comerciantes tradicionais e até por fiscalização pesada. Sem diálogo real, qualquer mudança acaba reforçando desigualdades em vez de construir um espaço coletivo.”
Para ele, o grande desafio é equilibrar revitalização e inclusão. “A Rua 8 pode sim virar referência de cultura e lazer, mas só se for para todos. O risco é transformar o Centro em um lugar que parece bonito por fora, mas vazio de vida real.”