O voo suspenso de Matheus Alcantara
No espetáculo “Sob(re) a Pele”, artista goiano transforma acrobacia em manifesto sobre corpo negro, ancestralidade e resistência
Há três anos e meio, quando concluiu a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Goiás, Matheus Alcantara buscava descobrir o que havia de latente em seu lado artístico. O convite de uma professora para se inscrever como bolsista no Orum Aiyê Quilombo Cultural foi a fresta que abriu um caminho sem volta. Desde então, a arte passou a ser a base de sua rotina. “A partir do momento em que entrei, nunca mais saí. Minha vida passou a girar em torno disso”, resume.
No Orum Aiyê, Alcantara encontrou espaço para transitar entre o aprendizado circense, a cena cultural e a construção de uma trajetória própria. Lá, tornou-se “pernauta” – artista de perna de pau – e incorporou orixás em cortejos de carnaval. Na primeira saída, representou Exu. “Foi muito potente dar corpo a um orixá ainda tão marginalizado. Estar nas ruas com essa figura foi transformador”. Na segunda, encarnou Ogum, experiência que reforçou o sentido de ocupar o espaço público com símbolos afro-brasileiros.
Esse percurso desembocou em “Sob(re) a Pele”, espetáculo que nasceu como número circense e, em apenas um ano, evoluiu para uma montagem completa. Dirigido por Marcelo Marques, com coreografia de Luciana Caetano, figurino de Raquel Rocha, preparação de atores de Renata Caetano e direção técnica circense de Cauê Marques.
O eixo da encenação é o tecido acrobático, usado como metáfora de nascimento, violência e potência. “No início, ele é casulo, acolhimento. Depois, quando passa para o vermelho e branco, traz as violências vivenciadas por pessoas negras. Mas também é poder: de cima, observo o mundo e ocupo um lugar de destaque”, explica.
A dramaturgia mobiliza tanto memórias pessoais quanto referências acadêmicas. Formado em Ciências Sociais, o artista leva ao palco discussões sobre raça, educação e desigualdade. “Sempre trouxe problemáticas da minha formação para dentro da arte. Elas moldam o que faço”, afirma. Essa costura se reflete na cena: tecido, trapézio e música afro se entrelaçam para simbolizar dores históricas e, ao mesmo tempo, a herança de resistência e comunidade.
O diretor Marcelo Marques situa a obra dentro da pesquisa artística “Solos Marginais”, dedicada à investigação de histórias de sujeitos invisibilizados. “Busco, por meio de pessoas e personagens marginalizados, contar suas trajetórias de superação e resiliência, revelando como somos moldados para sobreviver em uma sociedade que nos rejeita”, explica. Para ele, “Sob(re) a Pele” é mais que um espetáculo: “é um manifesto contra as injustiças e a favor da vida”.
Os desafios, contudo, não se limitam ao processo criativo. O financiamento segue como um dos maiores entraves. Cada apresentação depende de projetos que garantam remuneração mínima, mas a burocracia ainda é um obstáculo, sobretudo para artistas negros. Embora políticas públicas tenham avançado, há a percepção de que o apoio financeiro é insuficiente, especialmente no Centro-Oeste, onde certas expressões culturais permanecem pouco valorizadas. Representar orixás em cortejos de rua, por exemplo, é um gesto que nem sempre encontra o devido respeito.
Apesar disso, Alcantara encontra na potência da arte a força para permanecer. “A arte pegou na minha mão e disse: vamos mudar a sua vida. E realmente mudou”, afirma. No processo, aprendeu a se expressar com mais firmeza, a comunicar melhor e a ocupar espaços de visibilidade, ainda raros para corpos negros.
As próximas apresentações em Goiânia acontecem nos dias 4, 5, 11 e 12 de outubro, na sede do Orum Aiyê Quilombo Cultural, no Residencial Nossa Morada. Os ingressos são gratuitos e podem ser retirados pela plataforma Sympla.
O encerramento com o trapézio concentra a síntese do espetáculo. “Ele representa não só o que está sobre a minha pele, mas também as heranças dos antepassados e a ligação com as pessoas que estão ao meu lado hoje”, explica. O gesto final não é apenas acrobático: condensa o percurso de quem transformou a própria vivência em cena e devolve ao público um relato que combina estética, memória e afirmação.
Ao ocupar o espaço aéreo com o corpo suspenso, o artista estabelece uma metáfora concreta para o lugar que reivindica. O espetáculo não se limita a narrar violências; ele também projeta horizontes, apontando para a permanência de tradições afro-brasileiras e para a potência de artistas que surgem de contextos periféricos. “Sob(re) a Pele” dá forma a uma experiência coletiva que resiste mesmo diante de condições adversas de financiamento e de reconhecimento institucional.
Nesse sentido, a montagem ultrapassa a dimensão de obra individual e se inscreve como testemunho de um movimento mais amplo: o de jovens artistas negros que, no Centro-Oeste, vêm construindo linguagens próprias e disputando visibilidade em uma cena ainda marcada por desigualdades. Ao entrelaçar tecido acrobático, batuque e símbolos de ancestralidade, Alcantara afirma que a arte pode ser lugar de denúncia, mas também de reconstrução.
“Se eu conseguir fazer com que outras pessoas vejam que essa possibilidade existe, já valeu”, resume. Seu voo suspenso, sustentado pelo tecido e pela coletividade, condensa um gesto que é artístico, político e cultural: a prova de que, mesmo diante de obstáculos, há sempre novas formas de ocupar o espaço público e de inscrever histórias que, por muito tempo, foram relegadas à margem.
SERVIÇO
Quando: 4, 5, 11 e 12 de outubro
Onde: Rua 10 QdL Lt10 Residencial – Nossa Morada, Goiânia – GO, 74690-840
Entrada gratuita pela plataforma Sympla