Racismo atinge uma em cada seis crianças na primeira infância no Brasil
Levantamento revela que mais da metade dos casos ocorre em escolas e creches, comprometendo o desenvolvimento infantil
Antes mesmo de aprender a ler, muitas crianças brasileiras já aprendem o que é exclusão. Uma em cada seis, com até seis anos de idade, já foi vítima de racismo, segundo levantamento do Datafolha encomendado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Entre os casos relatados, mais da metade ocorreu em creches ou pré-escolas, espaços que deveriam acolher, mas acabam reproduzindo as desigualdades da sociedade.
A pesquisa, feita com 2.206 pessoas em todo o país, sendo 822 responsáveis por crianças pequenas, revela o alcance precoce da discriminação racial. Os dados mostram que 16% dos responsáveis afirmam que seus filhos sofreram algum tipo de racismo, e 54% desses episódios ocorreram dentro das instituições de ensino. Outros 42% aconteceram em espaços públicos, como praças e ruas, e 20% nas vizinhanças.
Os números escancaram a naturalização do preconceito no cotidiano e também o abismo entre a realidade e a percepção social. Um em cada dez entrevistados ainda acredita que não existe racismo contra crianças, e 22% consideram que os casos são raros. O negacionismo, neste caso, é mais que um erro estatístico: é uma recusa em enxergar o país como ele é.
Entre os responsáveis pretos e pardos, 19% relataram ter presenciado situações de racismo contra crianças pequenas, proporção quase duas vezes maior que entre os responsáveis brancos, 10%. Essa diferença não é apenas uma variação de experiência, mas o retrato da desigualdade que define quem sofre e quem raramente percebe a dor.
Segundo a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, o impacto do racismo na infância vai muito além da ofensa. Estudos sobre desenvolvimento cognitivo indicam que até 90% do cérebro humano se forma nos primeiros seis anos de vida. Nessa fase, estímulos positivos moldam habilidades emocionais e cognitivas, enquanto experiências de discriminação geram o que especialistas chamam de estresse tóxico — um estado contínuo de alerta que interfere na formação da autoestima e na capacidade de aprendizado.
Quando a criança é rejeitada ou ridicularizada por características físicas, o corpo reage com a mesma intensidade de um trauma. A repetição desses episódios cria marcas invisíveis que se projetam na vida adulta: dificuldades de concentração, medo de exposição, insegurança social e, em alguns casos, adoecimento psíquico. O racismo, portanto, não é um acontecimento isolado — é uma condição que se instala cedo e molda a forma como o sujeito habita o mundo.
O ambiente escolar, responsável por introduzir a criança à vida em grupo, desponta como o espaço mais recorrente dessas violências. O dado, que poderia causar espanto, apenas confirma o quanto a educação brasileira ainda reflete padrões de exclusão herdados de uma sociedade racialmente hierarquizada. A creche, que deveria ser um lugar de acolhimento e aprendizagem, torna-se, muitas vezes, o primeiro espelho da desigualdade.
Outro ponto revelado pela pesquisa é o peso da escolaridade na percepção do racismo. Entre pessoas com ensino superior, 74% reconhecem que crianças pequenas estão expostas à discriminação racial. Entre aquelas com ensino fundamental, esse número cai para 53%. A diferença sugere que a capacidade de reconhecer o preconceito é também uma questão de letramento racial e de acesso à informação.
Duas décadas após a criação da Lei 10.639, que obriga o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana na educação básica, o país ainda falha em transformar a legislação em prática cotidiana. A norma, muitas vezes, permanece restrita ao calendário de datas comemorativas, tratada como exceção em vez de fundamento do currículo.
A primeira infância é o território onde o país revela suas cicatrizes mais fundas. Ali, entre brinquedos e cadernos, o racismo se disfarça de brincadeira, se infiltra nas palavras e ganha a força de uma marca duradoura. Quando a sociedade se recusa a enxergar essas feridas, priva suas crianças de algo fundamental: o direito de existir sem medo.
