De Palmares à Aroeira: a arte negra em travessia pelo Cerrado
O Festival das Artes Negras ocupa Goiânia com uma programação que conecta o legado de Zumbi às expressões contemporâneas da cultura afro-brasileira
O Orum Aiyê Quilombo Cultural consolidou-se como um dos polos mais atuantes da produção negra contemporânea em Goiás. Mais do que um espaço de arte, é um ponto de inflexão no debate sobre identidade, memória e política cultural no Centro-Oeste. A partir do dia 15 de novembro, o local recebe o Festival das Artes Negras – De Palmares a Aroeira, que transforma o mês da Consciência Negra em um laboratório de criação e escuta. A programação gratuita, que se estende por uma semana, articula artes visuais, percussão, cinema e circo como linguagens de resistência, um mosaico do que o Brasil ainda precisa reconhecer como patrimônio.
O evento carrega no nome uma metáfora que nasce da terra e da história. “Entendemos que Palmares foi e é o símbolo de resistência atemporal das nossas sabedorias e lutas. Com esse festival, conectamos a Serra da Barriga com o Cerrado, unindo as palmeiras da Mata Atlântica com a aroeira do Cerrado. Se por um lado a palmeira verga mas não quebra, a aroeira aprofunda suas raízes em solo árido e emerge com tronco firme resistente às intempéries e aos cupins sejam eles literais ou metafóricos”, explica o diretor Marcelo Marques.
A fala sintetiza o espírito do Orum Aiyê, primeiro quilombo cultural urbano de Goiânia, um espaço que pulsa entre o rito e o gesto político. O Festival das Artes Negras, dentro dessa perspectiva, é menos uma agenda cultural e mais um processo de continuidade: a manutenção de uma narrativa que atravessa gerações e faz da arte um instrumento de sobrevivência e reexistência.
O Brasil em exposição
A abertura está marcada para o dia 15 de novembro, às 19h, no Museu Antropológico da UFG, com as exposições “Entre Olhares, Raízes e Memórias” e “Iyá Agba – As Matriarcas”. A primeira, coletiva, reúne obras de Raquel Rocha, Rafaela Rocha e Lucas Almeida, artistas que exploram a cor, o corpo e o gesto como afirmações de existência. A segunda, solo de Raquel Rocha, amplia sua pesquisa sobre religiosidade e memória, homenageando as Mães de Santo que preservaram a tradição afro-brasileira mesmo sob perseguição.
O resultado é uma mostra em duas camadas: uma coletiva, que traz o diálogo entre ancestralidade e contemporaneidade; e outra íntima, que coloca a mulher negra no centro de um saber transmitido por gerações. Mais do que contemplar, o visitante é provocado a ouvir, e a rever o próprio lugar dentro da história que observa.
No dia 20 de novembro, o bloco Tambores do Orum, primeiro grupo de percussão de Goiânia formado exclusivamente por pessoas negras, transforma o bairro do Itatiaia em território simbólico. O cortejo, com o enredo “A Revolta dos Malês e o Levante Africano”, tem concentração às 16h, no Campo de Futebol do Residencial Morada do Ipê.
O corpo, a tela e a palavra
No dia 21 de novembro, o Cine Ori transforma o Orum Aiyê em arena de debate. O curta “Two Distant Strangers” (2020), vencedor do Oscar, serve de ponto de partida para a conversa “O Mundo Real não cabe em Wakanda”, conduzida pelo babalorixá e antropólogo George Hora, da Bahia.
Hora, sacerdote de tradição Ketu e mestre em Estudos Étnicos e Africanos, propõe uma reflexão sobre o racismo à brasileira e as distorções da mídia de massa na representação da negritude. “Será uma conversa franca sobre racismo à brasileira e mídia de massa”, anuncia a programação. A proposta é atravessar os limites do entretenimento e tocar no que o país ainda reluta em encarar: as estruturas que sustentam a desigualdade.
Nos dias 22 e 23 de novembro, às 20h, o festival se encerra com o espetáculo “Solos Marginais”, dirigido por Marcelo Marques e interpretado por Codjo Kpade, Cauê Marques, Matheus Alcântara e Raquel Rocha. São quatro performances circenses que redefinem o corpo negro como campo político e poético.
O trabalho não pede piedade, pede leitura. Ao transformar a presunção de culpa em protagonismo, os intérpretes devolvem à arte o poder de denúncia e invenção. “Neste trabalho, os artistas transformam a presunção de culpa em protagonismo e liderança de suas próprias histórias”, resume a sinopse.
O quilombo e a cidade
A realização do Festival das Artes Negras é viabilizada pelos editais 13/2024, de fomento a projetos continuados de pontos de cultura de Goiânia, e 05/2024, da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento às Artes Visuais. Mas o que o sustenta vai além do recurso: é o acúmulo simbólico de uma comunidade que se organiza, cria e permanece.
Em uma capital que ainda reproduz desigualdades históricas, o quilombo se impõe como território de reexistência. O Orum Aiyê é, antes de tudo, uma metáfora do Brasil que resiste — um país que ainda busca reconhecer o valor das vozes que moldaram sua identidade.
De Palmares à Aroeira, o festival propõe mais que uma homenagem: uma travessia. Da memória à criação compartilhada, do corpo vulnerável à voz que se ergue, o evento inscreve na cena goiana uma pergunta que fica além da semana de celebrações: o que o Brasil faz com a herança que o formou?
Serviço
Festival das Artes Negras: De Palmares a Aroeira
Exposições: Entre Olhares, Raízes e Memórias e Iyá Agba – As Matriarcas
Quando: 15 de novembro, às 19h
Onde: Museu Antropológico da UFG (Praça Universitária)
Entrada: gratuita
Cortejo Tambores do Orum
Quando: 20 de novembro, às 16h
Onde: Campo de Futebol, final da Av. Planície, Rua W7, Residencial Morada do Ipê – Itatiaia
Entrada: gratuita
Cine Ori + Palestra “O Mundo Real não cabe em Wakanda”
Quando: 21 de novembro, às 19h
Onde: Orum Aiyê Quilombo Cultural – Rua 10, Qd L, Lt 10, Residencial Nossa Morada
Entrada: gratuita
Espetáculo “Solos Marginais”
Quando: 22 e 23 de novembro, às 20h
Onde: Orum Aiyê Quilombo Cultural – Rua 10, Qd L, Lt 10, Residencial Nossa Morada
Entrada: gratuita

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