Prefeitos devem apoiar deputados que mudem leis contra municípios
Todo fim de ano é a mesma correria em Brasília buscando emendas, porque os repasses mal cobrem a folha e os gastos com saúde, mas a única solução definitiva é refazer o pacto federativo e não fazer gentileza com o chapéu que as prefeituras usam para pedir dinheiro
Desde 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, os municípios têm o maior status de que já dispuseram, o de ente federativo no mesmo patamar de Estados, União e Distrito Federal. Em tese, prefeitos têm prestígio igual ao de governadores e do presidente da República. Mas isso é letra morta. Na prática, passam o mandato inteiro de pires na mão buscando socorro em Goiânia e Brasília, onde os parlamentares os recebem, esses sim, com pose de deuses. Todo dezembro, quando são definidas as verbas que serão pagas no ano seguinte, bate o desespero e o arrependimento por ter de aceitar emendas no lugar de dignidade. Tem sido isso ou nada.
A Confederação Nacional de Municípios, assim como a Associação Goiana de Municípios e a Federação Goiana de Municípios, passou os últimos dias lutando para que o Ministério da Cultura mande as verbas da Lei Aldir Blanc, a 2ª parcela está atrasada desde 29 de novembro. Ai de quem dá um chá de cadeira desse tamanho nas pastas federais…
A agonia não cessa. Ontem foi uma pasta, amanhã será outra, não tem fim de semana, não existe paz para os gestores dos municípios nem critérios para os repasses. Motivo: a União recebe os dinheiros e repassa a Estados e cidades o que lhe dá na telha. O escândalo é tamanho que há consultorias especializadas em contestar o volume dos recursos – e cada enxadada é uma minhoca, todo prefeito que entra com ação, ganha.
Não existe um culpado, mas vários. O principal deles também é a maior vítima entre as autoridades: o próprio prefeito. Na hora de apoiar alguém para senador e deputado federal, os escolhidos são os que financiaram sua campanha ou mandaram emendas. Mas o chefe do Executivo municipal se esquece, ou não quer se lembrar, de que sua canseira é provocada por um poleiro de pato chamado pacto federativo. Quem o estabeleceu? Pois é, foram os parlamentares federais, supostamente ouvindo os administradores.
Como deputados federais e senadores, inclusive os autoproclamados municipalistas, não agem nem reagem para acabar com a concentração do dinheiro nas Capitais, repete-se diuturnamente a marcha dos prefeitos com o chapéu à mão. Tem de ser mudado, por exemplo, o Imposto de Renda. Um engenheiro de Montividiu do Norte paga o IR. Seu dinheiro vai para a União, que retorna o tanto que quer para a cidade na divisa de Goiás com Tocantins. O Governo Federal e os integrantes do Congresso, rigorosamente todos de olho nas respectivas reeleições, isentaram do IR para quem ganha até R$ 5 mil por mês e deram um descontaço para os salários de até R$ 7.350. Só que o artigo 159, inciso I, alínea b, da Constituição da República manda enviar para os municípios 24,5% do dinheiro arrecadado com o Imposto de Renda. Ou seja, os deputados e os senadores apoiados pelos prefeitos fizeram cortesia com o chapéu alheio, o chapéu que os prefeitos usam para pedir emendas em Brasília.
Não há mal que dure para sempre – ele fica pior. É 100% dos municípios, pelo pacto federativo que virou letra morta, o que seus servidores da administração direta ou indireta pagam de IR retido na fonte. Como 90% dos funcionários públicos municipais ganham menos de R$ 7.350, as prefeituras que se virem a partir de 2026 para suprir essa perda.
Exatamente a mesma violência contra as finanças locais é cometida quando envolve o Imposto sobre Produtos Industrializados. Quando quer atrair empresas, um dos itens primordiais para se oferecer aos investidores é oferecer alíquota zero ou perto disso. Pois a regra do IPI é a mesma do IR, 24,5% vão para os municípios. Se o Estado ou a União oferecem esse diferencial competitivo, e é sempre uma boa se livrar de tributos, deveriam ressarcir suas vítimas – as prefeituras.
Diante das subtrações, sempre revestidas de legalidade e se forem à margem de qualquer modo os prefeitos dificilmente se revoltam, restam poucas alternativas. A melhor continua sendo apoiar deputados federais e senadores comprometidos de fato com os municípios, não importa o partido, a religião, o gênero. Do contrário, sobram poucas armas além da pidonhice.
Lembra do caso do início deste texto, o do cano que o Ministério da Cultura deu na Lei Aldir Blanc, que deve fazer o maravilhoso compositor querer ressuscitar só para fazer uma música de protesto a quem humilha os artistas? Do que a CNM, além de pedir audiência no próprio MinC, poderia se valer? Enviou um ofício pedindo transparência (“explicação técnica sobre o motivo do travamento exclusivo aos Municípios”) e cronograma (“divulgação imediata de uma data para o início dos pagamentos”). A eficácia dessa estratégia é discutível, porém, é tudo de que dispõe. Eficiência de verdade haveria se os parlamentares federais, todos eles apoiados nos municípios, mudassem as leis para acabar com essas vergonhas.
O saco sem fundo da exigência constitucional
O artigo 198, parágrafo 2º, inciso III, da Constituição da República determina que os municípios devem “aplicar anualmente em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre o produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 156 e 156-A e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, I, b, e § 3º”.
O que dizem esses artigos? O 156 diz quais impostos os municípios podem instituir (IPTU, ITU, ITBI, ISS). O 156-A trata do “imposto compartilhado por Estados, Distrito Federal e Municípios”. O 158, na seção “Da repartição das receitas tributárias”, descreve o que pertence aos municípios. O 159, I, b está acima (manda enviar para os municípios 24,5% do que se arrecada com os impostos de Renda e de Produtos Industrializados. O 159, I, parágrafo 3º determina que os Estados paguem aos municípios 25% do que lhes tocar de IR e IPI.
Em síntese: os municípios são obrigados a investir em saúde 15% do que arrecadam e esperam o que chega de Goiânia e Brasília. Tem sido insuficiente. Há prefeituras gastando no setor até metade do que sobra da folha. No caso, a culpa é da máfia da saúde. Medicamentos, equipamentos hospitalares e outras despesas se originam em dólar. Com as pessoas cada vez mais doentes, a exigência constitucional se torna um saco sem fundo. Reclamar a quem? Ao deputado federal e aos senadores que seu município apoiou. As demais alternativas são infrutíferas e até ingênuas.