Plataforma permite autoexclusão de apostas e busca conter avanço do vício em jogos
Ferramenta de autoexclusão integrada ao GOV.br bloqueia o CPF do usuário em todas as casas de apostas autorizadas, impede publicidade direcionada e se soma a medidas que envolvem saúde mental, regulação do setor e proteção de benefícios sociais
Em uma iniciativa voltada a frear a chamada “epidemia digital” dos jogos de azar que avança no País, o Ministério da Fazenda lançou a Plataforma Centralizada de Autoexclusão, integrada ao portal GOV.br. A ferramenta de autoexclusão surge como um mecanismo de proteção direta ao cidadão, permitindo que qualquer pessoa bloqueie, de forma simultânea, o uso do próprio CPF em todas as casas de apostas autorizadas a operar no Brasil.
Mais do que um simples recurso tecnológico, a autoexclusão se insere em uma estratégia mais ampla de saúde pública voltada ao enfrentamento do vício em jogos, um fenômeno que já atinge milhões de brasileiros e movimenta cifras bilionárias.
A autoexclusão desenvolvida pelo Serpro a pedido da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), a plataforma centralizada unifica um processo que, até então, exigia que o usuário solicitasse a exclusão de maneira individual em cada site de apostas. Ao realizar o pedido por meio do endereço gov.br/autoexclusaoapostas, o sistema passa a notificar automaticamente todas as operadoras autorizadas.
Na prática, a autoexclusão não apenas impede o acesso a contas já existentes e a criação de novos cadastros, como também bloqueia o envio de publicidade direcionada das chamadas “bets”. Com isso, busca-se eliminar estímulos constantes de marketing que funcionam como gatilhos para o comportamento compulsivo.
Para compreender a importância de uma ferramenta de autoexclusão, é fundamental entender a natureza do vício em jogos, classificado tecnicamente como Transtorno do Jogo, segundo a CID-11. Especialistas explicam que o cérebro humano pode desenvolver dependência não apenas de substâncias químicas, mas também de comportamentos capazes de ativar intensamente os circuitos de prazer e recompensa.
Segundo o psicólogo Magnum Freire, o vício em apostas apresenta mecanismos semelhantes aos da dependência química, embora atue de forma simbólica por meio de dispositivos digitais. A cada aposta, o cérebro recebe descargas de dopamina, e o risco se intensifica diante do ciclo extremamente rápido das plataformas modernas.
Modalidades como apostas “in-play”, realizadas durante o andamento das partidas, e mecanismos que simulam um “quase ganho”, como a devolução de pequenos valores após perdas maiores, distorcem a percepção real do prejuízo e mantêm o indivíduo em estado contínuo de hiperestimulação.
Enquanto o Executivo avança com instrumentos tecnológicos de contenção, o Legislativo teve um desfecho controverso na Comissão Parlamentar de Inquérito das Bets. Em junho de 2025, o relatório final apresentado pela senadora Soraya Thronicke foi rejeitado por quatro votos a três, encerrando os trabalhos da comissão sem a adoção de medidas oficiais pelo colegiado. Foi a primeira vez, em uma década, que um relatório de CPI no Senado foi rejeitado.
O texto rejeitado era considerado contundente e apontava acusações contra 16 pessoas, incluindo influenciadores digitais como Virginia Fonseca, por estelionato e propaganda enganosa, e Deolane Bezerra, por lavagem de dinheiro e organização criminosa. Soraya também criticou o uso de “contas de demonstração”, que simulavam ganhos elevados em ambientes subsidiados, prática que, segundo ela, induziria seguidores ao erro.
Apesar da rejeição formal, a senadora afirmou que encaminhará os documentos apurados à Polícia Federal e ao Ministério Público de maneira independente. No centro das discussões da CPI esteve o dado de que o setor movimentou entre R$ 89 bilhões e R$ 129 bilhões em apenas um ano, superando, inclusive, orçamentos de áreas estratégicas como a Educação.
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Autoexclusão nas apostas atua como “disjuntor” da impulsividade
Sob a ótica comportamental, a autoexclusão funciona como um verdadeiro “disjuntor” da impulsividade. Como o vício compromete o senso crítico e a capacidade de reconhecer o momento de parar, a plataforma do governo impõe uma barreira concreta, tanto física quanto digital, que interrompe o ciclo automático do hábito.
Ao retirar o acesso imediato às apostas, a ferramenta reduz a probabilidade de o indivíduo tentar “perseguir perdas”, comportamento comum em que se aposta cada vez mais na tentativa de recuperar prejuízos, agravando os danos financeiros e emocionais.
Um dos pontos mais sensíveis da regulação diz respeito ao uso de recursos destinados à subsistência básica em apostas. Dados do Banco Central indicaram que, somente em agosto de 2024, cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em plataformas de apostas.
Diante desse cenário, o Ministério da Fazenda publicou uma instrução normativa que proíbe o cadastro e a participação de beneficiários do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) em apostas.
As empresas do setor passaram a ser obrigadas a cruzar os dados dos usuários com o Sigap, o Sistema de Gestão de Apostas, tanto no momento do cadastro quanto em verificações periódicas realizadas a cada 15 dias. Caso um beneficiário seja identificado, a conta deve ser encerrada em até três dias, com prazo adicional de dois dias para saque de eventual saldo remanescente.
O avanço acelerado das apostas também traz reflexos diretos sobre o futuro educacional do País. Levantamentos indicam que cerca de 34% dos jovens que pretendem ingressar no ensino superior privado em 2026 afirmaram que precisarão interromper gastos com apostas para conseguir arcar com as mensalidades. Estima-se que quase 1 milhão de potenciais estudantes corram o risco de não efetivar suas matrículas devido ao comprometimento da renda com o jogo.
Na rede pública de saúde, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) já registram aumento na demanda por atendimentos relacionados à ludopatia. No entanto, essas unidades enfrentam limitações estruturais, como a falta de profissionais especializados e a inadequação de estruturas para lidar com esse novo perfil de dependência.