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terça-feira, 27 de agosto de 2024
Educação

Projeto de lei usa diversidade como bode expiatório da Educação

Termo ideologia de gênero está na boca dos principais políticos da extrema direita

Postado em 23 de janeiro de 2023 por Everton Antunes
Projeto de lei usa diversidade como bode expiatório da Educação
Termo ideologia de gênero está na boca dos principais políticos da extrema direita. | Foto: Reprodução

De tempos em tempos, como que movido pela necessidade de encontrar um bode expiatório sobre o qual se despeja o ódio e preconceito da sociedade, cria-se um rótulo para identificar o inimigo em comum de toda a população. Algo que não se sabe ao certo o que é, mas que apresentaria riscos ao coletivo. Desta vez, coube à ideologia de gênero representar esta ameaça.

No dia 24 de agosto, o plenário da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) votou a favor do Projeto de Lei nº 994/19 – cuja autoria é do pastor e deputado estadual Henrique César (PSC) –, que prevê a proibição dessa chamada “ideologia de gênero” nas escolas de Goiás. O PL levantou críticas da Defensoria Pública do Estado (DPE-GO), do Conselho Estadual de Educação (CEE) e do Ministério Público de Goiás (MPGO). 

Em amplo consenso de autoridades do direito, educação e ciências sociais, a ideologia de gênero nada mais é do que a deturpação de um conceito, “não tem sustentação”. Entretanto, Luciana Dias, antropóloga e secretária de Inclusão da UFG, orienta que “é necessário reconhecer a sua existência, enquanto noção, para promover um enfrentamento”.  

Origem

Em artigo, o pós-doutor em direitos humanos e cidadania pela UnB Rogério Diniz Junqueira delineia o surgimento do termo ideologia de gênero, hoje em voga nos discursos da extrema-direita. Segundo ele, o termo se originou em meados da década de 90 e, desde então, ganhou a adesão de autoridades religiosas e políticas ao redor do mundo. 

Para ele, na ocasião de discussões fomentadas pela ONU, entre 1994 e 1995, ocorreu forte reação do Vaticano – que buscava formas de manter a sua influência e poder – ao teor progressista dos debates realizados nestas conferências. Desde então, membros do clero e alas conservadoras da sociedade apoiam-se em retóricas que condenam a população LGBTQIAP+ e os direitos das mulheres.

Junqueira argumenta que não há consenso sobre a origem exata do termo. No entanto, em 1998, pela primeira vez em um documento eclesiástico, o bispo Óscar Alzamora Revoredo utilizou o termo. O pós-doutor reflete, neste mesmo artigo, o conceito de ideologia de gênero: de que haveria uma doutrinação que visa subverter os conceitos de família e a sexualidade das crianças, por meio do ensino.

Gênero

Ideologia e gênero: “Essas duas categorias, de maneira combinada, não fazem sentido e não têm sustentação conceitual que dê conta de garantir essa combinação”, enfatiza a antropóloga Luciana Dias. Para ela, a tentativa de aliar o conceito de gênero à doutrinação é falha e sem qualquer amparo teórico. 

Sexo refere-se ao aspecto biológico e às genitálias que distinguem o macho da fêmea. O gênero, por outro lado, diz respeito à construção do masculino e do feminino em sociedade, mediante expectativas e construções sociais. Por exemplo, convenciona-se socialmente que a cor azul é associada ao homem; enquanto que a cor rosa, à mulher.

Na visão da antropóloga, a partir do momento que a noção de ideologia de gênero ganha força, surgem processos autoritários e violentos à diversidade de gênero no Brasil. Ainda de acordo com Dias, é dever do Estado, por meio de políticas públicas educacionais, garantir um ensino antidiscriminatório, de combate ao machismo e à homofobia. 

Inconstitucional

A advogada Tatiana Bronzato, coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem) da DPE-GO, aponta para a inconstitucionalidade do PL. “Quem tem competência legislativa para tratar sobre diretrizes e bases da educação é a União Federal, o Congresso Nacional ou o Presidente da República”, explica. 

Além disso, a advogada alerta sobre o desrespeito às leis já estabelecidas: o Estatuto da Juventude, a Lei Maria da Penha e Convenções Internacionais de Direitos Humanos aos quais o Brasil se associa. Ao contrário da proposição do pastor Henrique César, “tanto tratados internacionais quanto essas legislações ordinárias preveem a abordagem de gênero no ensino”, reforça Bronzato.

A liberdade de cátedra – que estabelece o livre ensino e aprendizado, ou seja, sem quaisquer impedimentos – é prejudicada por esta lei, de acordo com a advogada. Para ela, deixar gênero e sexualidade de fora da discussão escolar pode ser denominado, do ponto de vista jurídico, “retrocesso social”.

Política

Segundo Gláucia Teodoro – professora e, em 2019, relatora de parecer contrário do CEE ao projeto –, os preconceitos direcionados à população LGBTQIAP+ e às mulheres não estão relegados somente a um lado do espectro político-ideológico – isto é, esquerda e direita. No entanto, “numa visão mais conservadora, [o preconceito] está introjetado no dia a dia e na prioridade das políticas”, observa. 

No Brasil, a ideologia de gênero surge no contexto político a partir de 2013 e ganha força em 2015 – paralela ao surgimento de tendências antidemocráticas –, conforme avalia a antropóloga. Dias reforça o caráter moralista e “falsamente cristão” dessa narrativa, que visa provocar uma espécie de medo e paralisia coletiva.

Ainda segundo Dias, o alinhamento político ao ultraconservadorismo tem o objetivo de “consolidar uma sociedade hierarquizada, discriminatória e que, de fato, garanta os privilégios que essa força política já tem e resguarda durante décadas”. Ela também prevê que esse interesse político baseia-se no desrespeito aos direitos humanos e “não trabalha em prol da justiça e igualdade sociais”.

Educação

Deixar de discutir sobre educação sexual e gênero nas escolas é, na opinião da professora Gláucia Teodoro, uma grande perda, uma vez que problemas como as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e a gravidez precoce podem ser evitadas por meio do ensino. A professora ressalta: “temos que tratar esses assuntos sem preconceito, discutir o ser humano na sua integralidade”.

O papel da escola – nas visões da professora, antropóloga e advogada – resulta em um denominador comum. No ambiente de ensino, é possível identificar potenciais casos de estupro e abuso infantil nos lares, já que essas ocorrências são tratadas como tabu dentro de casa e os professores são capazes de identificar comportamentos distintos na criança ou adolescente vítima da violência sexual. 

Além da conscientização dos estudantes sobre os métodos contraceptivos e o assédio, é responsabilidade da escola garantir a discussão sobre gênero e sexualidade de forma a garantir o ensino em todas as suas dimensões, do ponto vista de Luciana Dias. Já para a professora, é necessário retomar essas discussões na escola sem a conotação atribuída por “conservadores fundamentalistas”.

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