Luta por tratamento com cannabis revela país atrasado
Medicamentos à base da maconha ainda são recheados de preconceitos e desinformação
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mais de 100 mil pacientes fazem uso, sob prescrição médica, de produtos importados à base de cannabis no Brasil. Esses dados mostram um aumento de 15 vezes nos pacientes que usam o extrato da cannabis como tratamento para as mais diversas patologias. Porém, apesar do aumento na procura de tratamentos a base de cannabis, ainda existe muito preconceito e desinformação, principalmente com relação ao uso adulto (ou recreativo) versus o uso terapêutico.
O empresário Filipe Suzin, 31, que tem leucemia, e o pai dele, Ivo Suzin, 61, com Alzheimer, fazem uso de medicamentos à base da maconha. Isso só aconteceu após uma decisão liminar de 2020 permitir que pai e filho tenham acesso à cannabis medicinal com cultivo e porte liberados.
Ele relatou que a melhora só veio com o tratamento à base da planta, que iniciou em 16 de janeiro de 2019, com o auxílio da Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Ágape), mas em quantidades que ainda eram insuficientes. Até por isso, o empresário importou sementes e começou o plantio em casa, mas com receio que fosse denunciado. Ele chegou a viajar ao Uruguai para se informar mais sobre o assunto.
“Nossa necessidade era maior, e não podíamos ficar sem o remédio. E em casa está disponível com facilidade. Com a medicação, meu pai melhorou muito. Hoje, temos paz, qualidade de vida. Ele dorme bem, se alimenta e não está mais agressivo. Agora é uma tranquilidade”, afirma.
Processo judicial
Ivo passou seis anos sendo tratado com remédios alopáticos, mas a doença só avançou. Momentos de agressividade começaram a ser frequentes e, encurralada, a família buscou o tratamento com cannabis. “O primeiro passo foi encontrar um médico que apostasse na ideia. O segundo, uma associação que fornecesse o óleo. Deu tudo certo e não demorou para que os resultados aparecessem”, conta o filho.
O caso do empresário com seu pai ganhou repercussão em um vídeo de Ivo Suzin agredindo o filho durante o banho e o desenvolvimento após o tratamento com a cannabis. Sobre a decisão judicial, Filipe afirmou que ela traz segurança, principalmente pelo porte, com a permissão de sair de casa com o medicamento. Ele afirma ainda que o extrato de óleo da planta é o composto que, segundo os médicos, geram esses benefícios de melhora em ambos.
“Não é uma cura milagrosa, é uma coisa que tem que ser estudada de corpo para corpo. O que eu posso garantir é que a cannabis fez o que nenhum remédio até hoje nos proporcionou, a melhora e qualidade de vida do meu pai assim como a nossa. Com o tratamento sendo feito somente pelo óleo da planta completa trouxe alegria e amor para dentro de nossa casa”, pontua o jovem.
Solange Suzin, esposa de Ivo e mãe do empresário, demonstrou certa resistência no início do tratamento com a cannabis, mas hoje defende o uso devido à melhora do filho e do marido. “Estamos no paraíso, com os dois medicados e vivendo bem. Estávamos no limite antes, sem sossego. Que essa primeira decisão possa abrir as portas para tantas outras agora”, disse.
Uso medicinal é negligenciado
Segundo a médica Amanda Medeiros Dias, que é especializada em tratamento com cannabis, as principais diferenças estão na forma de consumo e nos produtos. “O uso recreativo é realizado por meio do fumo, vaporização e alimentação e está mais relacionado ao efeito psicotrópico que a planta oferece, uma vez que a concentração de THC não é controlada, já que o produto que se tem acesso geralmente é de origem desconhecida. Já o uso medicinal é feito por meio de uma análise médica e com produtos onde há o controle das dosagens de THC, CBD e outras substâncias que existem na planta, com objetivo de melhorar a qualidade de vida dos pacientes”, explica.
Amanda afirma que o grande inimigo da cannabis é o preconceito e a falta de informação sobre os benefícios da planta e de seus componentes. “O THC é a substância que ‘dá barato’, mas isso só vai acontecer quando há uma grande concentração dessa substância. No uso medicinal, o THC não é utilizado com esse objetivo e conta com benefícios significativos, pois tem a capacidade de oferecer relaxamento, aumento de apetite, alívio de dores, etc. Já o CBD, muitos acreditam se tratar de um fitocanabinoide atrelado apenas ao uso terapêutico, quando na verdade ele também está presente quando é feito o uso recreativo, assim como outras substâncias”, conta Amanda.
O uso terapêutico deve ser considerado independentemente da sua forma de uso, tendo uma relação com a busca do bem-estar do indivíduo, porém, o manejo voltado à saúde prevê as formulações que são legalmente permitidas e aprovadas pela Anvisa, contando com acompanhamento médico e posologias adequadas às necessidades de cada paciente. “A cannabis medicinal prioriza a seleção de matéria-prima orgânica, sem agrotóxicos e que conta com um processo de produção controlado. Dessa forma, sabemos a procedência do produto, a forma de cultivo e as dosagens de substâncias que cada produto tem”, conta a médica.
A qualidade dos produtos à base de cannabis é um diferencial que merece atenção, sendo que a produção dos óleos medicinais devem contar com níveis de tecnologia avançados que permitam uma produção segura e de alta qualidade. “É necessário entendermos que os produtos criados para uso terapêutico contam com uma série de procedimentos que visam garantir a qualidade de vida dos pacientes. São produtos naturais, que contam com processos de testagens seguros e que oferecem uma solução economicamente mais viável e mais saudável do que produtos sintéticos. Estamos cada vez mais seguros e embasados sobre os benefícios da cannabis, assim como sobre os limites entre o uso recreativo e o uso medicinal”, reforça Amanda.
Benefícios da Cannabis Medicinal
Já de acordo com o médico nutrólogo e intensivista, José Israel Sanchez Robles, estudos mostram que o cannabis diminui o amplo espectro de células tumorais por meio de vários mecanismos. “Há, ainda, pesquisas que apontam os canabinóides como supressores dos tumores, outros apontam ação anti-inflamatória que bloqueia o sistema de resposta do corpo ao câncer. Com isso, pode haver, até mesmo, a redução do crescimento tumoral de certos tipos da doença”, completa.
Além de ajudar contra o câncer na doença ou prevenção, o especialista lembra que o THC, como é conhecida a molécula mais psicoativa da cannabis, atua como relaxante muscular e anti-inflamatório. “Daí a produção de óleos com efeitos anticonvulsivos, anti-inflamatórios, antidepressivos e até anti-hipertensivos. Esses produtos também são usados como analgésico e estímulo para aumentar o apetite”, pontuou José Israel.
Até em animais a cannabis já provou ser eficiente. Desde 2020, por exemplo, a associação INDICA (Inclusão, Diversidade e Cannabis) de São Paulo decidiu focar seu atendimento nos bichos de estimação. O órgão já conseguiu ajudar mais de 2 mil animais, de todas as regiões do Brasil, a aliviar a dor, diminuir a ansiedade, reduzir problemas gastrointestinais e convulsões em cães e gatos
Depois de ter conquistado uma autorização judicial que permite à família plantar, portar e consumir maconha, o próximo passo é garantir que todos tenham esse direito. Um dos caminhos possíveis é o PL 399/15, projeto de lei que regulamenta o plantio de maconha para fins medicinais e tramita no Congresso Nacional desde 2015.
“Vai ser um avanço gigantesco ver quem precisa em busca deste tratamento. Mas isso não significa que as coisas serão totalmente resolvidas. O ato de ir atrás de uma autorização judicial é um caminho longo, e atualmente há uma demanda enorme e muita luta pela frente”, finaliza Suzin.