Comunidade e especialistas se unem para recuperar acervo de igrejas de Mariana
Trabalho teve início após acordo entre o Ministério Público de Minas Gerais e a Samarco
Parte da história de três comunidades destruídas pelo rejeito da Mineradora Samarco parecia perdida depois da tragédia, há dois anos. Além dos pertences de centenas de famílias, três igrejas históricas dos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira foram invadidas pela lama. Mas nem tudo foi perdido. Comunidade e especialistas de diversas formações se uniram para resgatar os objetos sacros e partes das igrejas, para que fossem restaurados.
O trabalho de recuperação desses objetos começou depois de um acordo entre o Ministério Público de Minas Gerais e a Samarco. A Fundação Renova, financiada pela mineradora para executar as ações de reparação pela tragédia, criou a Reserva Técnica, que hoje já tem mais de 2 mil peças, entre partes de altar, colunas, imagens de santos, pedaços minúsculos como cabeças ou mãos das estátuas.
Tudo estava espalhado entre uma área de mais de 100 quilômetros de lama e muita coisa ainda não foi encontrada. Da Capela de São Bento, cujo primeiro registro é de 1817, não sobrou mais que a fundação e os escombros. Para entrar na Capela de Nossa Senhora da Conceição, em Gesteira, foi um ano de trabalho para retirar todo o rejeito que cobriu boa parte do prédio e do entorno. Foram usadas técnicas de arqueologia para recuperar parte dos objetos.
As peças foram resgatadas em estado de conservação variado. Algumas imagens ainda contavam com as apuradas técnicas de pintura e até mesmo os olhos de vidro dos santos. Já a estátua de Jesus na Via Crucis, da capela de Gesteira, perdeu quase todo o pigmento. A restauradora Mara Fantini diz que o minério de ferro contribui para esse desgaste.
Uma estátua de Jesus crucificado, considerada obra erudita por Mara, era analisada pela equipe de restauro no momento em que a reportagem esteve no local. Um microscópio digital ampliava um trecho da imagem em que se via três tonalidades predominantes. Um era a “carnificação”, como é chamada a pintura da pele. A outra, a chaga de sangue no peito. Uma terceira faz parte da história recente: a chaga de lama.
De acordo com a restauradora, nem tudo poderá ser recuperado. Tudo é analisado caso a caso. Mas a questão levantada pelo grupo – que deve ser decidida pela comunidade e pela Arquidiocese – é se elas deveriam ser restauradas. “Se são passíveis de ser restauradas, será que eles vão querer que restaure? Ou será que vão preferir que essas peças fiquem com as marcas dessa tragédia?”.
Nem tudo na reserva técnica é objeto sacro. Estão armazenados papel de bala e salgadinho, caderno antigo, microfone, colar, garrafa quebrada, flores de plástico, muita coisa que iria para o lixo em qualquer outra ocasião. Mas não ali. Depois da lama, cada detalhe conta uma história para a população atingida,afirma Mara Fantini.
“Porque a partir do momento em que aqueles objetos estavam dentro das capelas, e as comunidades reconhecem ao ver esses objetos… ah, é uma flor de plástico. Só que a essa flor de plástico foi agregado um valor que ela não tinha antes. É uma flor de plástico que estava no interior da igreja no momento da tragédia. Tudo é história”
Outros objetos têm importância para os costumes católicos, mas, fora de contexto, poderiam passar despercebidos. Uma garrafa pet com água que foi encontrada durante as escavações não parecia ser importante. Graças à tentativa de guardar absolutamente tudo que existia no interior das igrejas, ela foi levada. Ao ser limpa, foi encontrada uma etiqueta. Era água benta, que o padre havia levado para a comunidade dois dias antes da tragédia. “As pessoas se comoveram muito”, conta Mara. “Podem até usar para abençoar a nova comunidade”.
Tradição contra a depressão
Dois anos depois da tragédia, outro tipo de memória, que estava enterrada no cotidiano da comunidade de Gesteira, permite agora um recomeço para mulheres da parte alta do distrito, que não foi soterrada pela lama, mas sofreu com a perda da igreja, da escola, dos vizinhos da parte baixa, e que vão ser reassentados. É a culinária típica da região.
Feijão tropeiro com fubá, pipoca de polvilho, torresmo, couve rasgada. E os doces! Canutilhos feitos em forma artesanal, um a um, com recheio de doce de leite mole. Arroz doce com rapadura. Angu tolo. Tudo vai virar produto para a Cooperativa Rural de Gesteira, criada recentemente com o apoio da Renova. Uma das cozinheiras, Maria Claudiana da Costa, diz que os danos psicológicos na comunidade foram numerosos. As pessoas pensavam que Gesteira seria esquecida. O projeto, segundo ela, ajuda a transformar essa realidade.
“Antes dessas coisas acontecerem, nos primeiros meses a gente ficou muito abatido. Meu pai precisou passar no psicólogo. A gente ficou muito para baixo, principalmente os idosos. A gente falou: acabou…. agora, a nossa autoestima está voltando. Claro que a gente sabe que tem a parte negativa, mas também tem a parte positiva, que é essa daí, do doce… A gente realmente tinha um tijolo na mão e não valorizava. Isso era feito no fim do ano, para receber a família. Às vezes até perdia, ficava lá. Não tínhamos a consciência da riqueza – agora temos – e o valor da nossa comunidade”, conta Maria.
Por enquanto, a cooperativa recebe funcionários da Renova, expedições de jornalistas e demais pessoas que passam pela região. A venda de doces e artesanato, como bordados, também vai ser feita por encomenda. Já existe um pedido de Belo Horizonte, segundo as cozinheiras. Uma página no facebook foi criada para divulgar o trabalho.
Para não esquecer
Mesmo com os avanços, a memória que está viva entre os moradores e nas ruínas dos distritos não é esquecida. Na avaliação das vítimas, nem deveria. Para a Comissão de Atingidos, o Brasil tinha que preservar o que ficou, para ensinar às futuras gerações.
“A gente pretende que os nossos territórios se tornem espaços de reflexão, para que nunca mais se repita o que aconteceu aqui”, defende uma das integrantes da comissão, Luzia Nazaré Mota Queiroz.
O Termo de Transação de Ajustamento de Conduta, firmado entre a Samarco, a União e órgãos do Espírito Santo e de Minas Gerais, prevê a criação de “centros de memória”, mas, segundo a Fundação Renova, ainda não está definido como e onde esses centros serão criados. Uma coisa é certa: se depender das vítimas, o maior desastre socioambiental do país não será esquecido.
Com informações da Agência Brasil