Em mais uma privatização “à brasileira”, Norte-Sul sai por uns poucos trocados
Lauro Veiga
A
política de privatização “à brasileira” confirma, nesses tempos, o mesmo
cardápio definido ainda no começo dos anos 1990, que permitiu que governos
pudessem alardear seu retumbante sucesso baseado não apenas na venda pura e
simples de bens e ativos públicos, vale dizer, de toda a sociedade, mas também
nos ágios geralmente estrondosos pagos pelos novos donos daquele patrimônio.
Não há segredos nesse negócio, muito embora as operações tenham sido desenhadas
para favorecer disfarçadamente grupos econômicos previamente definidos.
Na
entrega de nova leva de aeroportos a grupos privados, por exemplo, os valores
pagos pela outorga foram, em média, 986% maiores do que o fixado pelo governo,
com ágios de até impensáveis 4.739%. Obviamente, difícil acreditar que as
empresas decidiram torrar essa montanha de dinheiro para assumir as concessões
desses aeroportos (que nem estão entre os de maior movimentação de aeronaves e
passageiros) se não vislumbrassem ali uma oportunidade de lucros superiores aos
valores de contratação e ainda maiores do que os investimentos que serão
obrigados a realizar.
No
leilão mais recente, que entregou o chamado “tramo sul” da Ferrovia Norte-Sul
para a Rumo Logística, operadora controlada pelo grupo Cosan, o valor pago foi
duas vezes superior ao estabelecido pela outorga do trecho entre Porto Nacional
(TO) e Estrela D’Oeste (SP), num trajeto de 1.537 quilômetros. O preço da
outorga havia sido fixado em R$ 1,350 bilhão pela Agência Nacional de
Transportes Terrestres (ANTT) e a Rumo dispôs-se a desembolsar a “bolada” de
quase R$ 2,720 bilhões, algo como 100,9% a mais.
O
caldo começa a engrossar quando se lembra que a Valec, estatal que responde
pelas principais ferrovias em construção ou ainda em projeto no País, em
dezembro de 2008 publicou em seu site um estudo de avaliação econômica do mesmo
trecho agora leiloado. Ali, chegou-se a um valor presente líquido para a
outorga dos trilhos entre Porto Nacional e Estrela D’Oeste de R$ 3,831 bilhões,
uma diferença de nada menos do que 183,7% frente ao valor mínimo fixado uma
década depois pela ANTT.
Truques e
espertezas
Atualizado
com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor apurado pela Valec, a
preços de dezembro do ano passado, atingiria R$ 6,773 bilhões, cinco vezes
maior do que a estimativa finalmente estabelecida pela ANTT e 2,5 vezes mais o
valor que a Rumo vai desembolsar. Aqui, há um outro “truque” como se verá,
resultado de uma “esperteza” pouco lembrada, mas presente em todos os leilões
de privatização.
Balanço
·
A
Rumo vai levar todo o tramo sul da ferrovia mediante um desembolso imediato de
apenas R$ 135,98 milhões, meros 2% do valor atualizado da outorga, se considerados
os cálculos realizados em 2008 pela Valec. Tomando o valor do leilão, a empresa
vai desembolsar à vista apenas 5% da outorga arrematada.
·
O
restante, num total aproximado de R$ 2,584 bilhões (os 95% restantes), poderá
ser pago em suaves prestações trimestrais ao longo de – atenção – 30 longos
anos. Ou seja, serão 120 prestações trimestrais, cada uma no valor de R$ 21,530
milhões.
·
Em
valores nominais, o fluxo de caixa líquido projetado para os primeiros 10 anos
da concessão pode atingir algo como R$ 2,437 bilhões. No período, a Rumo terá
pago ao redor de R$ 861,20 milhões. Ou seja, a empresa precisará lançar mão de
pouco mais do que um terço do fluxo de caixa a ser gerado pela ferrovia para
pagar a outorga.
·
Em
30 anos, haverá a obrigação de investir R$ 2,80 bilhões na via, numa média
aproximada de R$ 93,330 milhões por ano que serão cobertos com folga pela
entrada de recursos esperada na operação da ferrovia. Detalhe: o investimento
já está descontado do valor líquido do fluxo de caixa. O que sobrar depois do
pagamento da outorga será integralmente apropriado pela concessionária.
Detalhe final: o preço acertado pelo grupo
vitorioso no leilão não vai cobrir sequer 28% dos R$ 9,796 bilhões investidos
pela Valec na construção do trecho entre Porto Nacional e Anápolis e na
implantação de 93,5% do trecho entre Ouro Verde (GO) e Estrela D’Oeste.
Comparando, a Valec investiu 3,6 vezes mais do que o lance vencedor do leilão.