O Estado por trás da criação da rede global de computadores e da Google
Gigantes norte-americanas na área de tecnologia foram resultado de uma parceria profunda entre o Estado, especialmente do aparato militar e de segurança, universidades particulares, pesquisadores independentes e empresas nascentes | Foto: Reprodução
parecer estranho, ainda mais nesses tempos de predomínio liberaloide no debate
econômico por aqui, mas a construção da Internet e o surgimento das gigantes
norte-americanas na área de tecnologia foram resultado de uma parceria profunda
entre o Estado, especialmente do aparato militar e de segurança, universidades
particulares, pesquisadores independentes e empresas nascentes. Nos Estados
Unidos, a pátria do liberalismo. As parcerias estabelecidas eram movidas por um
duplo objetivo: dominar as tecnologias tornadas possíveis com os avanços da
supercomputação, assegurando o protagonismo dos EUA na fronteira do
conhecimento; e desenvolver ferramentas de vigilância e controle, inicialmente
a pretexto de antecipar, prevenir e combater o terrorismo. Na sequência, como
mostram casos como o de Edward Snowden e Julian Assange, a vigilância foi
transformada em verdadeira espionagem institucional, bancada pelo governo dos
EUA e suas agências, contra nações e governos estrangeiros, mas não poupando
sequer cidadãos norte-americanos.
Essa
estreita colaboração entre governo e iniciativa privada, com o Estado muitas
vezes saindo à frente para liderar e financiar projetos em
áreas pioneiras e de risco naturalmente mais elevado, está por trás da criação,
por exemplo, do Google, como detalha texto de Jeff Nesbit, ex-diretor da
National Science Foundation (NSF), publicado ontem, em seu blog, pelo economista
Paulo Gala, pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge, no Reino
Unido, e Columbia, em Nova York (EUA), e atualmente professor de economia na Fundação
Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP). Conforme Nesbit, “se as agências de inteligência
do governo quisessem realizar vigilância em massa para fins de segurança
nacional, seria necessária a cooperação entre o governo e as empresas
emergentes de supercomputação”.
Na guerra fria
Como
relembra Nesbit, a rede mundial de computadores foi o resultado de um amplo
esforço envolvendo as famigeradas Central Intelligency Agency (CIA) e National
Security Agency (NSA), responsáveis, respectivamente, pela segurança interna e
externa nos EUA, entre outras agências do setor. Nos anos 1970, relata ele, “a
agência responsável pelo desenvolvimento de tecnologias emergentes para fins
militares, de inteligência e de segurança nacional – a Defense Advanced
Research Projects Agency (Darpa, criada ainda no governo de Dwight Eisenhower,
presidente dos EUA entre 1953 e 1961, em plena “guerra fria”) – conectou quatro
supercomputadores para lidar com transferências massivas de dados”. Na
sequência, essas operações foram transferidas para a própria NSF, que exerceu
papel fundamental para conectar em rede “milhares de universidades”,
desenvolvendo toda a arquitetura da World Wide Web (o famoso WWW).
Balanço
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No
final dos anos 1990, CIA e NSA trabalhavam em “estreita colaboração” com o Vale
do Silício, numa iniciativa bancada por recursos federais para literalmente
rastrear cidadãos no chamado ciberespaço. Um dos pontos aqui era de fato
espionar pessoas e antecipar eventuais planos e ações que poderiam ser
considerados ameaças à segurança doméstica. Em meio às pesquisas não apenas
financiadas, mas coordenadas por aquelas agências, surgiu o Google.
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Encontrar
e rastrear pessoas na Internet era o objetivo então e continua sendo hoje,
depois que o Google se tornou uma superpoderosa multinacional de tecnologia e
informação, concentrando um volume incalculável de dados sobre o que
consumimos, o que gostamos e principalmente sobre nossas escolhas e
preferências políticas. “Essa colaboração tornou possível um estado de
vigilância em massa público-privado que funciona até hoje”, reforça Nesbit.
·
CIA
e NSA financiaram (e financiam) cientistas da área de computação por meio do
projeto Massive Digital Data Systems (MDDS), também administrado em conjunto
pelas duas agências. Por volta de 1995, as doações do MDDS à Universidade de
Stanford mobilizaram um “esforço coordenado para construir uma enorme
biblioteca digital usando a Internet como espinha dorsal”. Entre os bolsistas
beneficiados estavam dois estudantes de graduação, Sergey Brin e Larry Page,
nada menos do que os fundadores do Google.
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Parece
muito evidente que não são casos isolados. Na verdade, trata-se de uma
estratégia de desenvolvimento tecnológico baseada na cooperação entre governo e
iniciativa privada. Como acrescenta Nesbit, esse “tipo de sistema de inovação
público-privado ajudou a lançar poderosas empresas de ciência e tecnologia como
Qualcomm, Symantec, Netscape e outras, e financiou a pesquisa fundamental em
áreas como radar Doppler e fibra óptica, que são fundamentais para grandes
empresas como a AccuWeather, Verizon e AT&T”. Qualquer dessemelhança como o
Brasil não é mera coincidência.
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Por
aqui, sob pressão do Ministério da Economia, em sua sanha para desmontar
qualquer possibilidade de desenvolvimento autônomo no País, a Centro Nacional
de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec), em assembleia geral
extraordinária realizada no dia 11, quinta-feira, decidiu por sua dissolução,
decisão a ser integralmente cumprida nos próximos 12 meses. O País está prestes
a liquidar a única empresa fabricante de semicondutores da América Latina,
tomando o caminho oposto ao escolhido pelos EUA e reforçado nas décadas
seguintes, quando já havia se tornado uma superpotência.
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Vai
se consolidando por aqui mais um crime de lesa-pátria, como já exposto neste
espaço. O Brasil vai abrir mão de qualquer veleidade de participar de forma
soberana e autônoma da economia do conhecimento, abandonando de vez a intenção
de ingressar nas novas fronteiras da tecnologia por suas próprias pernas. Até
que uma reação possa recolocar o País em seu caminho poderá ser tarde.