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sábado, 23 de novembro de 2024
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Opinião

Reflexos de uma sociedade violenta

De acordo com os recentes dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia brasileira matou, no período de cinco anos, uma média de seis pessoas por dia. É preciso levar-se em conta que as ações letais das polícias geralmente são omitidas ou subnotificadas.  Em apenas cinco anos a polícia matou no Brasil mais […]

Postado em 19 de junho de 2021 por Redação
Reflexos de uma sociedade violenta
Foto: O Hoje

De acordo com os recentes dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia brasileira matou, no período de cinco anos, uma média de seis pessoas por dia. É preciso levar-se em conta que as ações letais das polícias geralmente são omitidas ou subnotificadas.  Em apenas cinco anos a polícia matou no Brasil mais do que a polícia dos Estados Unidos matou ao longo de trinta anos. Vale destacar que o Brasil tem uma população de 200 milhões de habitantes, enquanto nos Estados Unidos a estimativa é de 319 milhões, ainda que a polícia norte-americana não seja a mais recomendada a servir de referência de padrões civilizatórios no que se refere às suas instituições repressivas. 

Por qual razão a polícia brasileira eleva, de maneira assustadora, os índices estatísticos de mortes violentas? São números que, de tão absurdos, chegam a ultrapassar as mortes ocorridas em áreas de guerras declaradas. Nisso existe uma similaridade: a polícia brasileira é idealizada dentro de uma cultura do conflito, do confronto, do enfrentamento. Os policiais saem das academias com a mesma mentalidade que tinham quando entraram: de que são “combatentes”, e que o inimigo será aquele que a sociedade estigmatizar e etiquetar. Salvo louváveis exceções, saem às ruas não para servir e proteger toda a sociedade, mas para intimidar, coagir, constranger, priorizando o enfrentamento e privilegiando o emprego de armas. 

Mas, há que se perguntar: a cultura de uma polícia violenta é construída no âmbito circunscrito das instituições policiais, de forma autônoma e isolada? Ou ela é apenas o sintoma de uma realidade inerente à nossa cultura social? 

Por muito tempo acreditou-se que a truculência policial era a consequência da baixa escolaridade dos policiais. Atualmente, percebemos que a escolaridade nada tem a ver com a violência praticada pelos chamados “homens da lei”. As academias das policiais se modernizaram, incluindo em seus currículos disciplinas como Direitos Humanos, Sociologia, Legislação, etc. Além disso, vem aumentando, consideravelmente, o número de policiais com curso superior. Sabemos agora que o problema da violência policial é mais complexo. Ela envolve ou é reflexo de um recrudescimento de mentalidades reinantes em outras instituições, como o Ministério Público e o Judiciário, instituições estas representantes da mentalidade da sociedade dominante. Muitos juízes e promotores são lenientes com a violência e o desrespeito aos Direitos Humanos. Essa tolerância dissimulada de “não fiquei sabendo” ou “ao menos está matando bandido”, é altamente perniciosa porque não apenas deixa impune o policial criminoso, mas estimula o surgimento de mais policiais violentos, inclusive imaginando que agem corretamente.

  Essas instituições, por culpa de muitos de seus integrantes, contribuem para o estado de barbárie da polícia brasileira. Por outro lado, em homenagem ao adágio que diz que “conhece-se uma sociedade pelas instituições que ela tem”, podemos afirmar que todas as mazelas que as instituições públicas nos infligem, principalmente a violência policial, são o produto da mentalidade de nossa sociedade. A sociedade brasileira, dado o seu retrocesso civilizatório e elevada discriminação em relação às classes socialmente “diferentes”, é protagonista no estímulo e na assimilação de uma cultura de violência policial. Em sociedades com gritantes abismos que realçam os contrastes sociais, distinguindo-se ricos e pobres, com predominância de políticos corruptos e empresários larápios, de um lado, e uma classe explorada e estigmatizada, de outro, justifica-se a existência de uma polícia violenta, coercitiva, intimidadora, amparada por instituições como o Judiciário e o Ministério Público, sempre dispostos a darem guarida aos atos de violência policial, inclusive letal, através da aceitação dos famigerados “autos de resistência”. 

Repete-se, a cada pleito eleitoral, um elevado número de policiais eleitos para cargos legislativos, tanto no âmbito estadual quanto federal, evidenciando-se o equívoco da sociedade acerca do modo de enfrentamento da violência. Na verdade, grande parte da população é diariamente enganada por programas televisivos e de rádio sensacionalistas que exploram a tragédia humana, fazendo espetáculo barato com a criminalidade violenta e transformam policiais em celebridades. E muitos desses oportunistas, tanto apresentadores quanto policiais, lançam-se na política, sempre se beneficiando da ingenuidade de uma população manipulada, enganada. A sociedade ignora que a função da polícia não é a de legislar. Não faz ideia do perigo que representa para a população quando é a polícia quem tem influência na elaboração de leis penais. Não consegue assimilar que o Brasil não precisa de mais leis nem de mais presídios, como instrumentos de enfrentamento à criminalidade. 

A polícia brasileira é violeta porque a sociedade é violenta. A polícia, desta forma, constitui-se no espelho dessa sociedade. Conhece-se a polícia que temos pela sociedade que somos. Esta sociedade se empenha em “etiquetar”, em selecionar, quem pode ou deve ser eliminado. Ela se projeta, exterioriza o seu ódio, a sua violência, através de sua polícia que deve dizimar o “inimigo”. A polícia, por sua vez, como sendo a “longa manus” dessa sociedade, é apenas a executora, a responsável por “mostrar a cara” e fazer o “trabalho sujo”. 

Considerando-se, assim, temos que a polícia, em alguns aspectos, é também vítima do sistema. E podemos considerar dois fatores: primeiro, grande parte dos policiais é oriunda das camadas que eles são obrigados a reprimir; segundo, de acordo com as previsões mais generosas e positivas dos serviços de psiquiatria das polícias no Brasil, aproximadamente 80% dos policiais, especialmente os militares, não estão em condições mentais de portarem armas de fogo nem fazerem serviço de policiamento nas ruas.  Portanto, a questão sobre o enfrentamento da violência no Brasil é muito mais complexa. 

É preciso que haja, urgentemente, uma reforma, uma redefinição, uma transformação de paradigmas, uma revolução em nosso processo civilizatório. Como já tive a oportunidade de manifestar em textos anteriores, a causa da violência no Brasil é a consequência de nosso retrocesso como civilização. Quanto à aterrorizante cultura de violência e mortalidade disseminada na polícia brasileira, creio que não deveríamos satanizá-la tanto. Afinal, essa polícia não cria uma cultura de segregação violenta, ela apenas reproduz e executa, fielmente, aquilo que a sociedade lhe exige.

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