Lei coloca religiosidade como política pública no tratamento de dependentes químicos
Especialistas reforçam que medida abre portas para financiamento de centros religiosos
O governador Ronaldo Caiado sancionou uma lei que torna a religiosidade uma política pública no tratamento de dependentes químicos em Goiás. Conforme o texto, o assistido deverá ser consultado sobre qual religião ele se identifica e, então, será contatada uma das entidades religiosas cadastradas para que promova o acompanhamento religioso.
O texto estabelece que “os órgãos e entidades responsáveis pelo atendimento aos dependentes químicos deverão cadastrar as entidades religiosas interessadas em prestar o atendimento religioso”.
A proposta foi de autoria do deputado estadual e cristão Henrique César (PSC). O parlamentar alegou que “a frequência constante a uma igreja, templo ou a prática dos conceitos propostos por uma religião e a importância dada à religião e à educação religiosa na infância são possíveis fatores protetores do consumo de drogas”. Na justificativa, ele citou “estudiosos” para corroborar com a narrativa, sem, no entanto, especificar quais são os estudos.
Psicóloga e professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Larissa Arbués ressaltou que ficou impactada ao ver que a lei foi sancionada. De acordo com a especialista, é necessário atentar-se para o fato de que a medida abre portas para financiamento de centros religiosos, além de incentivar o uso deles nas instituições públicas.
“O problema não é a afirmação que a religiosidade ou espiritualidade sejam elementos que contribuem na reabilitação de pessoas que fazem uso de drogas ou tenham qualquer outra demanda de saúde mental. É uma dimensão que quando faz sentido para a pessoa pode sim ajudar. A questão é que ao se tornar uma política pública abre-se portas para financiamento de unidades de caráter religioso (o que na verdade já existe) e estímulo ao seu uso dentro de instituições públicas, que devem manter seu caráter laico”, explicou Arbués.
A especialista pontuou que a maioria das religiões atribuem princípios morais à dependência química, o que não é efetivo no tratamento. “A visão da maioria das religiões e do suposto tratamento religioso que existem hoje atribuem um caráter moral ao uso e ao usuário. Portanto, do tratamento. E isso sim sabemos que não funciona. O uso abusivo, ou disfuncional, de drogas é um fenômeno complexo e multideterminado, seja individual ou como questão social. A perspectiva moral é reducionista e geralmente tem uma abordagem culpabilizante do usuário”, afirmou.
Coordenadora do Centros de Atenção Psicossocial (Caps) Noroeste, que atende usuários de álcool e outras drogas, Sueli Neves reforçou que a religião pode colaborar no tratamento da dependência química, porém, é uma doença e como tal deve ser tratada em uma unidade de saúde. Além disso, ela chamou atenção para a necessidade de investimentos na rede de atenção psicossocial.
“O aspecto religioso pode contribuir no tratamento da dependência de álcool e outras drogas. No entanto, não como política pública. Primeiro por compreender que a dependência é uma doença. E por ser doença, trata-se em uma unidade de saúde”, disse. “Não enxergo a religiosidade como política pública no tratamento de dependência ao álcool e outras drogas. Pelo contrário, o que vejo como efetivo em saúde mental é o trabalho desenvolvido pela Rede de Saúde Mental de cada município. O que precisamos é investimento público nos Caps, Pronto Socorro, Gerartes, Residências Terapêuticas, Ambulatórios de Psiquiatria, Unidades de Acolhimento, dentre outros”, completou.