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sábado, 23 de novembro de 2024
Opinião

Não peça ao pica-pau para bicar os postes de concreto

Essa passagem tem a ver com a nossa capacidade de aplicar um conhecimento que adquirimos

Postado em 28 de junho de 2022 por Redação

Virgilio Marques do Santos

Hoje quero contar uma história. Por isso, peço que libere sua imaginação e leia até o fim. Essa passagem tem a ver com a nossa capacidade de aplicar um conhecimento que adquirimos, mas que ainda temos pouca experiência na aplicação. É algo que ocorre muito quando assistimos uma aula, palestra ou lemos um livro focando apenas nos exemplos práticos e não na teoria. Na pressa de irmos logo para a aplicação, acabamos não ligando para entender o porquê das coisas. Vamos lá.

Imagine que você está caminhando e se depara com vários postes de madeira perfurados. Por alguns minutos tenta elaborar alguma teoria para explicar o porquê os postes estão assim. Ventila algumas ideias, como chuva de granizo, cupins, formigas etc, até que se depara com a causa: um pássaro. Você dá sorte e observa um pássaro sentar-se nos postes e perfurá-lo com seu poderoso bico.

Depois de alguns minutos observando o pássaro efetuar o seu trabalho, você registra que o causador do estrago nos postes foi aquela ave. E, por se tratar de um ser não conhecido, você o chama de bica-postes. Pelo nome, é fácil notar que você atribuiu ao pássaro a capacidade de bicar e fazer estragos em postes.

Como em todo conto, o tempo passa e um dia você dá de cara com um problema: está instalando postes de concreto e precisa efetuar alguns furos para passagem de cabos de fibra óptica. Como a área é extensa, você calcula que o investimento para perfurá-los será muito alto.

Ao buscar uma alternativa melhor, lembra-se daquela ave: bica-postes. Ao recordar do ocorrido e do nome, sua memória é reconstruída de forma a fazer você acreditar que aquela ave seria a melhor solução para a execução do trabalho. Com isso em mente, você solicita ao pessoal de suprimentos que adquira algumas aves e as solte na região para os furos serem executados.

Pelo relatório que lhe enviam, os pássaros têm um custo muito menor do que as brocas especiais para a perfuração. Animado, você consegue aprovação e adquire 50 aves para o trabalho. Cinco dias depois, as solta e, de repente, os pássaros não conseguem bicar o concreto. Ao tentar fazê-lo, a maioria acaba se machucando e o poste de concreto fica intacto. Mas, afinal, onde foi que você errou? Por que o bica-postes consegue fazer furos com facilidade nos postes de madeira, mas não nos de concreto?

A resposta racional é óbvia, à posteriori. O que a ave consegue bicar é a madeira, não o poste. Qualquer coisa de madeira pode ser vencida pelo poderoso bico e pelo engenhoso sistema de contrapesos que ela possui na cabeça. Mas para você, que não teve tempo para se aprofundar no processo pelo qual a ave realiza os furos nos postes de madeira e nem a testar em pequena escala com os postes de concreto, a ideia lhe pareceu boa no início, mas descartável agora.

Ao ouvir essa história, é comum rirmos do tamanho da hipérbole. É claro que ninguém confundiria um pica-pau com um bica-postes, afinal, sabemos que o concreto possui características diferentes da madeira. Porém, se mudarmos essa parábola para algo do nosso cotidiano, seja uma teoria ou um software, veremos que confundir o pica-pau não é algo tão difícil assim. Perdi as contas das vezes que vi um pica-pau ser contratado para bicar os postes.

Quer ver? Aposto que você irá se lembrar de alguma vez em que já presenciou isso. Os exemplos geralmente começam pela constatação de um problema. Em seguida, alguém da liderança declara o desafio como urgente, importante e meta. Com isso, todos os seus subordinados tomam conta de que aquele desconforto é algo sério que irá ocasionar demissões ou promoções. 

Em seguida, os grupos começam a se organizar para buscar soluções para alcançar a meta. Alguns vão estudar, outros buscam benchmarkings, fazem visitas, vão à palestras – até que, aleatoriamente, se deparam com um case perfeito. Nele, a empresa em análise implantou um poderoso software sem dor nenhuma e conseguiu, num prazo recorde, alcançar a meta.

De repente, a meta superdesafiadora fica dependente apenas da aquisição de um sistema. Diante de tal constatação, a única coisa a ser feita é defender o orçamento e comemorar o resultado pós-implantação. Ao iniciar a implantação, depois da defesa e comprometimento pessoal perante toda liderança, o bica-postes adquirido torna-se um pica-pau. Várias nuances da realidade da sua empresa não se adequam ao sistema vendido e a decepção é enorme.

Mas, pensando no seu caso, o vendedor então lhe oferece uma customização. Há uma maneira de fortalecer o bico do pica-pau e torná-lo um bica-postes. Mais dinheiro é investido e o desafio se estende. Mais esforço é necessário. Mudanças de time devem ser feitas, processos, procedimentos, consultorias, enfim, a empresa vai se transformando de maneira não planejada para utilizar os pica-paus adquiridos, nem que para isso os postes de concreto sejam trocados pelos antigos de madeira, só para a implantação terminar.

Depois de muito sofrimento, há geralmente três saídas. A empresa: desiste de perfurar os postes de concreto e cria um viveiro para os pica-paus; vende os pássaros e desiste de resolver o problema, já que agora não é tão importante mais; compra postes de madeira e elabora um novo case de sucesso, mesmo que para isso mudanças não tão boas tenham sido feitas.

Por isso, ao se deparar com pica-paus, pense muito bem na sua função e em quando devem ser utilizados. Avalie também todas as mudanças necessárias para que aquilo funcione corretamente.

Ao fim, gostaria de deixar claro: isso não é uma ode à não mudança. É apenas um relato de quem adora as mudanças que se tornam melhoria, mas que tem certeza de que não há almoço de graça ou pudim instantâneo. Toda melhoria requer mudança, mas nem toda mudança é melhoria. E, mesmo que a mudança leve à melhoria, ela muitas vezes será árdua e a sua constância de propósito será fundamental para ter êxito.

Diante disso, faça suas escolhas muito bem para ter a tranquilidade de bancá-las, haja o que houver. Em nossa carreira, isso é muito importante para o sucesso no longo prazo.

Virgilio Marques dos Santos é diretor executivo de consultoria de gestão de carreiras

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