CFM aposta no obscurantismo ao frear avanço da cannabis medicinal
A resolução proíbe a indicação da cannabis medicinal para qualquer outra terapia que não seja o tratamento da epilepsia
Kathleen Fornari
Nos últimos anos, o uso da cannabis medicinal no Brasil vem ganhando cada vez mais defensores, especialmente pelos estudos que comprovam seus benefícios nas mais diversas enfermidades. De acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), já existem mais de 35 mil evidências relacionando a cannabis medicinal à saúde, com efeitos positivos de muitas das 500 moléculas atribuídas à planta. Baseados em estudos animadores, milhares de médicos brasileiros, das mais variadas especialidades, passaram a prescrever produtos à base de cannabis.
Preocupado com esse avanço, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por motivos ainda desconhecidos, resolveu frear a utilização da cannabis medicinal no País. No último dia 14 de outubro, foi publicada no Diário Oficial da União uma nova resolução da entidade (CFM Nº 2.324, de 11 de outubro de 2022) que limita o uso da cannabis medicinal para o tratamento exclusivo de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou Complexo de Esclerose Tuberosa. De acordo com o texto, fica proibida a utilização de cannabidiol (CBD) para terapia de qualquer outra patologia, algumas delas com estudos avançados em várias partes do mundo, como transtorno do espectro autista, Alzheimer e Parkinson.
Com validade de três anos a partir de sua publicação, a resolução proíbe a indicação da cannabis medicinal para qualquer outra terapia que não seja o tratamento da epilepsia em crianças e adolescentes. Isso mesmo: proíbe! Se nada for feito, centenas de milhares de brasileiros terão que parar seus tratamentos com cannabis medicinal, utilizada, por exemplo, para a melhoria na vida de pessoas que sofrem com problemas no sistema nervoso central e periférico, imunológico, endócrino e cardiovascular.
A “CFM Nº 2.324” destaca, também, a proibição da prescrição de cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o cannabidiol. Tentando evitar a difusão do tema, a resolução veta a realização de palestras e cursos sobre o uso do cannabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como divulgações publicitárias.
Antes da regulamentação publicada pelo CFM, outras resoluções importantes norteavam o mercado da cannabis medicinal no Brasil, sempre com uma atuação de destaque da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em 2019, a “Resolução 327” da Anvisa, que se tornou na principal referência para o setor, tratou dos “procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de cannabis para fins medicinais, e dá outras providências”.
Já em março de 2022, a “Resolução 660”, também da Anvisa, passou a definir os “critérios e os procedimentos para a importação de produto derivado de cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde”. Já no último mês de junho, foi aprovado por unanimidade a fabricação de cannabidiol em território brasileiro a partir de derivado vegetal de cannabis (importado), em uma atualização da “Resolução 327”.
Sendo assim, a resolução “CFM Nº 2.324” é um retrocesso à medicina brasileira e à ciência mundial. O Brasil, mais uma vez, deixa de lado uma tendência global que tem ajudado milhões de pessoas ao redor do planeta e opta por impedir intervenções médicas com base científica em pacientes que fazem tratamento com este fitofármaco, condenando-os a uma rotina estressante e precária.
É importante ressaltar, evitando a onda de preconceito e fake news, que a quantidade de tetrahidrocanabinol (THC) existente nos produtos importados com extração full spectrum, aprovados pela Anvisa, não produz os efeitos típicos da maconha, mas sim tem o objetivo de tratar ou amenizar sintomas diversos, como espasmos, tremores, convulsões e enjoos.
Frente às decisões recentes durante a pandemia, como a liberação da prescrição de cloroquina e ivermectina a ser administrada a critério médico – remédios que comprovadamente não auxiliam no tratamento da Covid-19, essa resolução do CFM, que praticamente criminaliza a cannabis medicinal no Brasil, mais parece uma medida ideológica de “caça às bruxas”’ do que algo pensado em benefício dos pacientes e da população.
Hoje, para reverter esse quadro e fazer com que a cannabis medicinal seja respeitada no País, precisamos de uma mobilização nacional pró-saúde, com foco principal na aprovação de leis que estimulem estudos relacionados a sua funcionalidade e, principalmente, que beneficiem a produção de fármacos nacionais, diminuindo preços e tornando a cannabis medicinal mais acessível para a população. Chega de retrocesso!
Kathleen Fornari é especialista em cannabis medicinal, CEO e cofundadora da Anna Medicina Endocannabinoide