Brasil: a nação refém de suas emoções
Sam Cyrous é pesquisador em Psicologia Clínica e Cultura, psicólogo, logoterapeuta e analista existencial
Sam Cyrous
Uma paciente minha me contou sobre o neto que estava triste e que se frustrava com facilidade. Outro paciente meu me relatou que estava preocupado com a situação política brasileira. O que está acontecendo no Brasil? E me dei conta desse crossover estilo filmes de super-heróis, entre a frustração da criança e a situação política.
Vejamos, tínhamos duas crianças que começam a brincar em um jogo competitivo, uma ganha e a outra perde. Como fica isso? Primeiro que precisamos entender que nenhuma competição é saudável por si só. Ela ensina a lidar com frustração, dizem, mas a verdade é que não! A competição mostra que a derrota e a frustração existem, mas tem algo a mais.
No caso do Brasil, tínhamos dois times e seus torcedores, e tínhamos muita gente que nem queria estar nos times, mas acabou optando. Daí tem os que ficaram felizes com a vitória, outros ficaram tristes, outros ficaram frustrados por escolher um lado que perdeu, e outros por escolherem um lado que nem gostam, mas que ganhou. Matematicamente mais de metade não gostou do resultado!
Só que não há votos de censura em sufrágio universal. Há voto de confiança: vota-se numa escolha e não contra a outra escolha. E é isso que fazemos desde crianças. Quando bem novos, não conseguimos conjecturar alternativas que não existem, fazemos escolhas entre o que existe. Entre os 3 e os 5 anos somos encorajados a explorar o mundo e imagina-lo, buscando alternativas entre o real e a fantasia. Nesse processo, percebemos que nossas ações impactam o mundo ao nosso redor, porque há regras sociais, ambientais e naturais.
Ora impedir acesso de alimentos, oxigênio e até órgãos vitais, por interromper uma estrada pública, prejudica não só a família que quer ir de férias ou visitar um amigo em outra cidade, impede acesso de insumos básicos à sobrevivência humana e econômica de uma região. As autoridades podem até informar sobre multas e prisões, mas na distinção realidade versus fantasia cria-se uma ilusão de que nada disso ocorrerá e as forças de segurança apoiarão os movimentos (o que pode ou não ocorrer). Não há clareza da consequência dos atos, achando que tudo é válido.
Para Erikson, isso ocorre, em parte, pela fase anterior, que vai dos 18 aos 36 meses, quando a criança começa a expressar maior necessidade de ser independente e controlar a si mesmo e ao mundo. A criança se acha soberana e o mundo inteiro é o seu castelo. Por isso ela urina ou defeca quando os pais estão saindo de casa — o recado é simples: “Quem manda aqui sou eu”.
É aqui que nasce nosso desejo de fazermos escolhas: o que vestir, o que comer, onde brincar, quem queremos abraçar. E metade da população brasileira quer abraçar uma liderança e a outra metade quer abraçar a outra. Metade quer mandar e a outra metade também. E acabamos urinando e defecando nas escolhas do outro, achando possuir o direito de mandar no castelo que… é coletivo!
Já na fase anterior, até nosso primeiro ano e meio de vida, aprendemos a confiar ou não nas pessoas. E aqui jaz a raiz do problema! Achamos que alguém é malvado porque choramos e não nos atende ou temos fome e demora a trazer o alimento. Parece meio viajada a teoria, não é? Mas é assim mesmo. Dependendo da quantidade de conforto e carinho que nossos pais dão, desenvolvemos a capacidade de confiar neles e, posteriormente, no resto do mundo, ou não confiar em ninguém e nos sentimos negligenciados.
Os choros das pessoas em situação de pobreza ou fome, os choros dos povos indígenas, o choro da violência nos mais diversos âmbitos foi tantas vezes negligenciado no nosso País que não sabemos mais como confiar. E se alguém grita conosco, faz a sua voz ser ouvida e rompemos o silêncio. E repetimos o grito. Aliás, como é marcado o primeiro dia do Brasil? Com o Grito de Independência. É a teoria de Erikson no nascimento da nação.
A democracia nos pode ajudar a suprir esse medo de desconfiança e abandono (que nasce da primeira fase) e percebermos que estamos sob o controle dos processos (como na segunda fase), mas sem jamais esquecer que influenciamos o mundo à nossa volta (característica da terceira fase). Ao mesmo tempo, a educação infantil nos pode ajudar a vivermos uma democracia mais adulta.
A fase, quando não resolvida, explica Erikson, faz com que tenhamos que arcar com a consequência lá na frente. Então temos adultos, de todo o espectro político, que sofreram porque foram negligenciados enquanto pessoas, e negligenciados quando crianças; pessoas que não tiveram as oportunidades de escolher entre as melhores opções e constantemente, em casa e na política, tiveram que escolher entre a opção menos ruim e, por isso, se tornam pessoas que (não por maldade mas por ingenuidade) não conseguem visualizar a consequência coletiva de suas ações.
Impedir o direito de ir e vir, chutar a barriga de uma grávida por estar na casa de alguém que vota diferente, apontar arma a alguém de quem se discorda, atropelar manifestantes são a mesma coisa: a incapacidade de lidar com a frustração, porque, na verdade, temos medo de sermos negligenciados de novo pela liderança eleita democraticamente.
E como resolver isso?
Primeiro, parando de julgar o outro — seja o outro que convida ao diálogo, o outro que impede o acesso, ou o outro que votou diferente. Não somos obrigados a odiar ninguém! Mas também não podemos ofender o outro e depois dizer “era só a minha opinião” — isso ainda é julgar!
Segundo, precisamos ter políticas reais de saúde mental. Não estou falando de transtornos mentais (não é patologizar comportamentos), mas compreender que quem está se manifestando (da forma certa ou errada) é quem está sofrendo e muito já sofreu na vida… nem sabem por quê! Ou, mais grave, sequer sabe que seu agir é uma reação ao seu sofrimento — pensamos ser autônomos e lutarmos pelo bem comum, quando somos controlados por uma dor que é antiga e profunda.
Terceiro, precisamos dar a mães e pais condições para cuidarem de suas crianças — condições alimentares, higiênicas, salariais e psicológicas.
Uma nação que ignora o cuidado de suas crianças está fadada a, em menos de três décadas, repetir comportamentos extremos. Uma nação que cuida de suas crianças, em uma geração resolve seus maiores problemas.
Não é sermos contra manifestações democráticas. É sobre pensarmos de onde vem nosso sentimento de desconfiança constante, de achar que somos os melhores e sentir que nossas ações não têm consequências em outras vidas.
Deveríamos nos manifestar não contra a liberdade, mas refletir sobre a nação que queremos ter: a que cria adultos saudáveis que sabem manifestar suas vontades democraticamente ou a que continua tendo adultos que são reféns de emoções que nem compreendem!
Sam Cyrous é pesquisador em Psicologia Clínica e Cultura, psicólogo, logoterapeuta e analista existencial