Adultos no espectro
Raphael Bezerra da Silva é jornalista e portador do Espectro Austita
As neurodivergências, quando detectadas ainda na infância, podem não provocar transtornos tão significativos quanto a descoberta de determinados tipos de condições já na fase adulta da vida. Passar pela infância, adolescência e parte da vida adulta sem compreender seus comportamentos, especialmente os sociais, manias e comportamentos repetitivos geram, em muitos, uma frustração muito grande. Conhecido como TEA, o Transtorno do Espectro Autista, é uma condição plural que atinge pessoas de diversas classes sociais, gênero, cor e raça.
Depois de completar 27 anos e passar por uma profunda crise de depressão, o que incluiu a perda severa de peso, apagões, crises de pânico e afastamento de pessoas próximas e amadas, voltei correndo para os tratamentos psicológicos.
Minha primeira experiência em um consultório foi em 2016, depois de uma série de automutilações e desprazeres cotidianos. A dificuldade em lidar com perdas e mudanças sempre me atingiu de uma forma substancial. Ao longo das primeiras dez sessões, ficou muito claro que a minha principal demanda era a dificuldade em manter relações sociais próximas, dificuldade em fixar em trabalhos ou estudos.
Em 2019, depois de encarar um trauma que mudou a minha perspectiva de vida, a primeira sugestão de uma avaliação multidisciplinar me foi oferecida. Durante acompanhamento com um psicólogo através do Sistema Único de Saúde (SUS), a possibilidade de que algo de “errado” dentro de mim finalmente apareceu. Embora a possibilidade de ser portador do autismo estivesse fora do meu campo de visão, descobrir que o que eu sentia e como eu sentia não era uma exclusividade me aliviou.
Mas chegar a um diagnóstico não foi tão simples. Em três anos, consegui uma certa estabilidade no Jornal O Hoje, passando de repórter de política, Editor Executivo e atualmente comando a Editoria de Cidades. Com a minha formação em jornalismo, conheci muitas famílias, crianças e adultos com a TEA. Esse contato me ajudou a me perceber.
Cada vez que eu passava por um psicólogo, psiquiatra e psicanalista, mais clareza eu tinha sobre as minhas dificuldades sociais, o traço mais marcante da minha condição.
Me aproximar e me manter próximo de alguém sempre foi um desafio. Com o início da pandemia, essa dificuldade virou um pesadelo. Até mesmo ficar dentro do quarto, isolado até mesmo da minha mãe, pai e irmão, era tão exaustivo que eu precisei fugir.
À flor da pele
E fugir foi a pior decisão que tomei na vida. Com a impulsividade à flor da pele, morando sozinho e encarando muitos dilemas, entendi que não conseguia realizar certas atividades comuns do dia a dia para um adulto. Manter a higiene pessoal em dias, organizar e planejar atividades para o dia eram extremamente complexas e trabalhosas.
Passei meses frustrado por não conseguir manter uma rotina de atenção às pessoas amadas. Decepcionado por não conseguir, pasmem, tomar banho, me alimentar e manter uma agenda programada para os próximos dias.
O sentimento de fracasso, pressionado pela solidão após o afastamento das pessoas próximas, desencadeou minha ansiedade e despertou crises de pânico incontroláveis.
Sobrevivendo
Depois de voltar para casa e receber os cuidados e atenção necessários para me restabelecer, voltei a procurar ajuda psicológica. Já na segunda consulta veio a especulação. “É bem possível que você seja autista”. Com a indicação para o neurologista e psiquiatra, iniciei alguns testes, convoquei parte da minha família para me acompanhar e, quando chegou o diagnóstico, chorei de alegria e alívio.
Daquele dia em diante, nada mais pareceu me assustar. Tudo o que vivi, como vivi e senti a vida fez tanto sentido que parecia que havia nascido novamente.
Esse sentimento de que eu posso abraçar o mundo ressignificou tanto minha cabeça. Mas ainda há tantas coisas e tantas pessoas que eu perdi ou abandonei por não compreender suas intenções e sentimentos que ainda dói. Mas é bom poder finalmente não sentir vergonha de mim mesmo.