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sábado, 22 de fevereiro de 2025
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O Passado Escravocrata

Cartas de alforria revelam crueldade e condições impostas à liberdade

Pesquisador digitaliza documentos históricos e descobre detalhes sobre a liberdade comprada com preços altos e regras impiedosas no século XIX

Postado em 20 de fevereiro de 2025 por Luana Avelar
Carta de alforria de Maurício, escravizado por Maria Quitéria de Jesus. Foto: Arquivo Público do Estado da Bahia/Divulgação
Carta de alforria de Maurício, escravizado por Maria Quitéria de Jesus. Foto: Arquivo Público do Estado da Bahia/Divulgação

Os cartórios de Salvador guardam documentos que ajudam a entender as complexas relações sociais e econômicas que formaram o Brasil. Entre esses registros, estão as cartas de alforria, documentos históricos que mostram não só a liberação de pessoas escravizadas, mas as condições implacáveis que vinham com essa liberdade. Uma pesquisa liderada pelo historiador Urano de Cerqueira Andrade, que há décadas estuda esses documentos, revelou que entre 1800 e 1855, cerca de 19.726 cartas de alforria foram registradas em Salvador. Esses registros oferecem um vislumbre sombrio do sistema escravocrata e das condições impostas pelos senhores aos seus antigos escravizados.

A pesquisa, parte do projeto Digitalizando Fontes Manuscritas Ameaçadas, escaneou mais de 1.400 livros notariais, abrangendo documentos de 1664 até a década de 1920. O trabalho, financiado pela Biblioteca Britânica, está ajudando a preservar esses registros e torná-los acessíveis para estudo. No entanto, a grande revelação é o que essas cartas de alforria realmente dizem sobre a “liberdade” concedida aos escravizados. Embora as cartas pareçam ser um documento de emancipação, muitas vezes elas traziam cláusulas que tornavam a liberdade mais uma prisão.

Entre os dados tabulados, estão informações como nome, idade, gênero, cor, ocupação e, especialmente, as condições impostas para a concessão da liberdade. Urano de Cerqueira Andrade destaca que 70% dessas alforrias eram condicionadas. “A alforria não era dada como uma dádiva do senhor, mas comprada, retribuída ou conquistada em troca de algo. Muitas vezes, o escravizado só era libertado após a morte de seu senhor, ou sob a condição de fornecer outro escravizado como substituto”, explica o historiador.

As condições variavam, mas todas tinham um ponto em comum: a liberdade estava longe de ser plena. O caso mais comum era a imposição de que o libertado vivesse com seu senhor até a morte deste. Outro exemplo recorrente era a troca de um escravizado por outro, ou até mesmo um casamento forçado entre o senhor e a mulher escravizada, como condição para sua liberdade. Essas condições demonstram que a liberdade era apenas uma ilusão, com muitas pessoas ainda sendo tratadas como propriedade, mesmo após sua emancipação formal.

Andrade também discute as origens dos escravizados registrados nesses documentos, destacando que muitos vinham de áreas como Angola, Cabinda e Calabar, regiões devastadas pela escravidão. As cartas de alforria não fornecem uma identificação exata da origem de todos, mas a pesquisa revela que, a partir de 1719, havia uma forte presença de africanos originários da região do Benin, bem como de outros povos do Norte da África.

O estudo também confronta a ideia de que a escravidão no Brasil seria mais “suave” do que em outras partes do mundo. Andrade refuta essa noção, enfatizando que a escravidão no Brasil foi tão cruel quanto em qualquer outro lugar. “A escravidão no Brasil não foi menos cruel. Muitas histórias, como a de uma mãe que comprou sua filha após reencontrá-la sendo vendida em Salvador, demonstram a brutalidade desse sistema”, afirma. O pesquisador observa que a escravidão no Brasil foi uma das maiores responsáveis pela formação da riqueza do país, mas essa riqueza nunca foi compartilhada com os escravizados, que continuaram a viver em condições desumanas.

A importância da preservação desses documentos, como os livros de batismo e de compra e venda de escravizados, é outro ponto do trabalho de Andrade. Esses documentos são a chave para entender as complexas dinâmicas da escravidão, desde o momento da chegada dos africanos até a liberdade conquistada, muitas vezes sob condições severas. O pesquisador também lembra que, apesar da vasta documentação histórica, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir que essa parte da história seja reconhecida e ensinada nas escolas.

“Estudar a história é entender o passado, o presente e buscar melhorar o futuro. Sem olhar para o passado, não podemos aprender com os nossos erros e construir uma sociedade mais justa.” Para ele, reconhecer os horrores da escravidão é o primeiro passo para uma verdadeira reparação histórica e social.

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