Autistas mascaram comportamentos para se adaptar, mas custo emocional é alto
Fenômeno da camuflagem social, comum entre pessoas com TEA, leva a exaustão, ansiedade e depressão
Pedir desculpas por não entender uma piada, forçar contato visual, disfarçar estereotipias, copiar o tom de voz dos outros. Esses gestos sutis, imperceptíveis para quem transita com facilidade pelos espaços sociais, fazem parte do esforço cotidiano de milhares de brasileiros autistas para parecerem “comuns”. O termo técnico que define esse comportamento é camuflagem social — um conjunto de estratégias utilizadas, consciente ou inconscientemente, por pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) para se ajustarem às normas neurotípicas.
O fenômeno tem sido objeto de estudos na comunidade científica, sobretudo a partir dos relatos de adultos no espectro, em sua maioria mulheres, que passaram anos ocultando traços. A camuflagem é dividida em três dimensões principais: compensação, quando se aprendem mecanismos para lidar com dificuldades sociais; mascaramento, quando se ocultam comportamentos considerados “estranhos”, como gestos repetitivos ou entonações diferentes; e assimilação, quando se adotam padrões típicos de convivência para se encaixar socialmente. Em todas essas formas, o preço é alto: desgaste emocional, sofrimento psicológico e, em muitos casos, ausência de diagnóstico.
Um estudo conduzido por Laura Hull e publicado em 2020 no Journal of Autism and Developmental Disorders analisou mais de mil adultos autistas no Reino Unido e identificou que aqueles que recorriam mais intensamente à camuflagem apresentavam três vezes mais sintomas de depressão do que os demais. A pesquisa também apontou uma correlação entre esse comportamento e pensamentos suicidas. Outro levantamento, divulgado na revista Autism em 2022, reforçou os riscos envolvidos. Realizada com 164 adultos com TEA, a investigação concluiu que camuflar-se socialmente é um fator de risco relevante para o desenvolvimento de transtornos mentais graves, como ansiedade, depressão e burnout.
No universo profissional, a cobrança por posturas consideradas “adequadas” se intensifica. Pessoas autistas muitas vezes sentem-se pressionadas a ocultar características próprias para se adequar a modelos que não contemplam suas formas singulares de comunicação, interação e percepção sensorial. Essa demanda, frequentemente invisível para colegas e lideranças, impacta diretamente a saúde mental e a permanência desses indivíduos no mercado de trabalho. Muitos adultos diagnosticados apenas na vida adulta relatam sofrimento psíquico desde a juventude, compreendido somente anos depois, com o diagnóstico.
Na experiência materna, os obstáculos se acumulam. Mulheres autistas descrevem dificuldades específicas no período pós-parto, em consultas médicas com os filhos, reuniões escolares e demais interações cotidianas. Mesmo conscientes de sua condição, muitas relatam a necessidade constante de disfarçar reações por medo de julgamentos que as rotulem como descuidadas ou incapazes. A sobrecarga emocional, somada à ausência de acolhimento, contribui para sentimentos de isolamento e esgotamento.
Embora o tema tenha conquistado maior visibilidade nos últimos anos, o reconhecimento formal da camuflagem ainda é restrito. As políticas seguem centradas, em grande parte, na infância e nos sinais mais evidentes do espectro. Enquanto isso, adultos que suprimem seus traços seguem desassistidos. A inclusão efetiva exige mais do que ajustes físicos: demanda transformação cultural, capacitação de profissionais da saúde e educação e, sobretudo, escuta atenta às vivências das pessoas neurodivergentes.
O Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contabilizou 2.216.603 indivíduos com autismo autodeclarado, o que representa 1% da população. O dado, no entanto, é considerado subestimado por especialistas, já que muitas pessoas no espectro, especialmente mulheres e adultos, seguem sem diagnóstico justamente por conseguirem ocultar características em contextos escolares, familiares e profissionais.
A camuflagem social não é uma virtude. É uma resposta de sobrevivência diante de um meio que rejeita a diferença. Não representa superação, mas uma adaptação imposta. Enquanto a sociedade continuar valorizando o esforço de parecer “normal” em detrimento do direito de ser quem se é, o custo continuará sendo pago por quem aprendeu, desde cedo, a esconder-se para conseguir pertencer.