Ocupa o Centro fortalece uso cultural da Rua 8, mas revitalização para por aí
Projeto amplia circulação de pedestres e atividades culturais na Rua 8 e Rua do Lazer, enquanto especialistas sugerem ajustes para integrar outras áreas do Centro
A cidade de Goiânia reacendeu o debate sobre seu Setor Central com a implementação do projeto “Ocupa o Centro”, uma iniciativa da prefeitura inspirada em lei de autoria da vereadora Aava Santiago (PSDB), que busca transformar a Rua 8, a histórica Rua do Lazer, em um polo de cultura e convivência.
O projeto, que entrou em vigor em meados de agosto de 2025, completou cerca de três meses de aplicação em novembro, mas o entusiasmo inicial com a ocupação popular da via esbarra em um questionamento estrutural levantado por especialistas: a revitalização de Goiânia será apenas o “urbanismo de uma só rua”?.
A proposta central do “Ocupa o Centro”, instituída pela Lei nº 11.293, é restringir a circulação de veículos no trecho da Rua 8, entre a Avenida Anhanguera e a Rua 4, no Setor Central. O fechamento ocorre às sextas-feiras e sábados, a partir das 18 horas, e aos domingos e feriados, durante todo o dia, visando ampliar o espaço para pedestres.
O objetivo da vereadora é resgatar a vocação cultural da Rua do Lazer, recuperando o protagonismo da região como opção de entretenimento e lazer. A parlamentar também defende que o projeto é um “marco regulatório permanente para a ocupação dos espaços públicos”.
A lei que deu origem ao projeto percorreu um longo caminho até ser efetivamente implementada pela prefeitura. Em 2021, Aava apresentou o Projeto de Lei 562/2021, que propunha o fechamento de parte da Rua 8 aos domingos e feriados para uso de pedestres e ciclistas.
A proposta avançou apenas em 18 de abril de 2024, quando foi aprovada em segunda votação na Câmara Municipal e encaminhada para sanção ou veto do então prefeito Rogério Cruz (Solidariedade). Em 16 de outubro de 2024, a Comissão de Constituição e Justiça derrubou o veto do Executivo ao projeto, e, no dia 12 de novembro do mesmo ano, o Plenário da Câmara rejeitou o veto integral do prefeito, levando o presidente da Casa a promulgar a lei. Em dezembro de 2024, a norma foi oficialmente sancionada/promulgada como lei municipal nº 11.293.
Apesar disso, sua aplicação prática só ocorreu meses depois: em 15 de agosto de 2025, a prefeitura colocou o “Ocupa o Centro” em funcionamento. No fim daquele mês, a autora da lei observou publicamente que a iniciativa estava sendo executada pelo terceiro fim de semana consecutivo. Agora, com cerca de três meses de funcionamento, a cidade começa a perceber os primeiros impactos do projeto.
O urbanista Fred Le Blue, doutor em Planejamento Urbano e Regional, critica a forma como a revitalização está sendo conduzida, alertando para o risco de a iniciativa fracassar ou repetir erros do passado. Para ele, a ordem das ações está invertida: a revitalização precisa ocorrer antes do fechamento, pois sem infraestrutura básica como calçadas adequadas, iluminação, segurança e limpeza, o espaço não se sustenta.
A ausência de manutenção básica foi um problema que, por anos, afastou frequentadores do centro. O especialista defende que a revitalização deve ser construída “a muitas vozes”, com protagonismo aos moradores e trabalhadores, e não apenas a comerciantes e incorporadores.
Le Blue critica duramente a concentração de esforços em uma única via, classificando a ação de “urbanismo de uma só rua”. Segundo ele, focar somente na Rua 8 é “perder a noção de floresta”. Goiânia tem diversas ruas históricas, mas o entusiasmo se concentra apenas na Rua 8, embora o centro ainda viva uma certa decadência, especialmente à noite e nos finais de semana.
Ele sugere medidas simples e simbólicas, como aplicar a Lei da Fachada Limpa, para resgatar o orgulho dos goianienses e dar visibilidade à arquitetura Art Déco, que está em grande parte do Centro.
Outro ponto de alerta é o risco de elitização do Centro. Fred explica que, em muitas cidades, quando o espaço é valorizado, os aluguéis sobem, e a população tradicional é forçada a sair, fazendo o Centro perder sua identidade. Ele nota que a cena cultural, que já foi diversa e popular, foi perdendo espaço por falta de apoio e pressão econômica, restando hoje espaços mais elitizados.
A professora de arquitetura Maria Ester de Souza, complementa que as propostas para o Centro são muitas vezes vistas como “maquiagem” e não olham para a região como um bairro que precisa ter sua diversidade preservada, olhando historicamente apenas para as avenidas Goiás, Anhanguera e para a Rua 8.
O professor de cinema Lisandro Nogueira, da Universidade Federal de Goiás (UFG), reforça que o que é necessário é uma política urbana séria, como a implementada em Curitiba, que revitalize o centro para que as pessoas morem lá efetivamente, garantindo vida noturna e cultural.

Rua 8 ganha público, mas conflito com Cine Ritz expõe limites da intervenção
A reocupação do espaço gerou uma série de respostas, tanto positivas quanto negativas, entre o público e os estabelecimentos tradicionais da Rua 8. De um lado, frequentadores relatam uma maior sensação de segurança para estar na rua desde o fechamento, já que antes a ocupação era perigosa devido à passagem de carros e motos.
Muitos notaram uma mudança positiva e “radical” com maior movimentação, programações e a abertura de novos bares. O movimento é visto como positivo para a revitalização e para o público, motivando alguns a explorarem e conhecerem outros lugares na região que não frequentavam antes.
Uma frequentadora considerou que a nova política serviu para “formalizar” um movimento que já acontecia. Ela sugere que a iniciativa é um passo relevante para a prefeitura valorizar os espaços, talvez com a contratação de seguranças para atrair públicos diferentes, como famílias com crianças.
Outra pessoa acha que o fechamento foi positivo para a Rua do Lazer, que estava “praticamente abandonada à noite”, mas, em sua perspectiva, o local está muito cheio agora, dificultando encontrar um lugar para sentar e ficar confortável.
Do outro lado, a implementação do projeto gerou um forte conflito com o Cine Ritz, o cinema de rua mais antigo e em atividade da Capital, considerado Patrimônio do Centro de Goiânia. O Cine Ritz denunciou ter sido alvo de vandalismo após o fechamento da Rua 8, tendo sua fachada pichada e vidros quebrados.
O cinema ressaltou que o público, incluindo famílias e crianças, deixou de frequentar o local devido ao barulho excessivo, à falta de segurança e de estacionamento provocados pelo uso da Rua 8 para “festas e badernas”. O estabelecimento alegou que não foi consultado sobre as medidas de fechamento.
A revitalização: um paradigma de “rua única”?
A concentração do projeto na Rua 8 levanta o dilema sobre a real capacidade do “Ocupa o Centro” de reverter décadas de abandono em todo o Setor Central. Aava defende que o projeto é parte de um bloco maior de propostas legislativas, e que outros projetos, como a extensão do calçadão da Rua do Lazer até a Rua 8 e leis de incentivo cultural, estão em debate na Câmara. Ela enfatiza que o objetivo é que o Centro seja permanentemente um espaço de convivência, não dependendo apenas de um calendário cultural.
Contudo, Fred Le Blue e a professora Maria Ester de Souza insistem que a atenção limitada à Rua 8 ignora a complexidade do Centro. A gestão do atual prefeito, Sandro Mabel, demonstrou interesse em reformular projetos anteriores. Mabel pretende focar a remodelação em todo o Centro, começando pelo Jóquei Clube, seguindo pela Rua 3 e Avenida Goiás (com incentivo à reforma de fachadas e paisagismo), e só depois reformular o uso da Rua 8, inspirando-se em vias europeias com cantinas italianas e músicos.
