Coluna

Campanha pelo “desmonte” consolida sistema tributário injusto e excludente

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 15 de agosto de 2020

Lauro Veiga

As
elites brasileiras alcançaram um “êxito considerável”, ao longo de décadas, ao
tornar hegemônico o “discurso da carga tributária excessiva”, como manobra para
ocultar o caráter injusto e excludente do sistema tributário, mantendo
inalterada a baixíssima cobrança de impostos dos muito ricos, preservando
privilégios e níveis de concentração da renda inaceitáveis. A observação está,
mais uma vez, em detalhado trabalho desenvolvido por David Deccache, doutorando
em economia pela Universidade Nacional de Brasília e mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em economia da Universidade Federal Fluminense, e Lucas Di Candia,
professor substituto do Departamento de Economia da Universidade Federal
Fluminense.

O
estudo mostra que a carga tributária brasileira é inferior ou muito próxima à
de países hoje desenvolvidos quando se encontravam na fase inicial de
construção de seus Estados de bem-estar social e sustentavam renda per capita
média semelhante à do Brasil atual. Apenas para reforçar, por volta do final
dos anos 1960 e começo da década seguinte, quando sua renda média por habitante
rondava a casa dos US$ 14,8 mil, França, Alemanha, Reino Unido, Finlândia e
Noruega apresentavam carga tributária, pela ordem, de 33,8%, 32,2%, 33,4%, 32,8%
e 33,3% do Produto Interno Bruto (PIB). O Brasil, com a mesma renda média per
capita, registrava uma carga bruta total de impostos em torno de 32,4% do PIB.

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O
mesmo discurso move ministros, assessores, economistas e comentaristas, numa
espécie de “pensamento único”, em sua campanha incansável de desmonte do
Estado. A retórica aponta persistentemente que o Estado é muito grande, porque
cobra dos cidadãos impostos que representam praticamente um terço ou pouco mais
de todas as riquezas geradas pelo lado real da economia (como se o setor
público não fizesse parte da economia) e não oferece o retorno esperado em
serviços de qualidade. Em resumo, como a “turma do desmonte” gosta de afirmar,
o Estado arrecada demais e gasta mal.

A
ideia, portanto, é enxugar o tamanho do Estado, preferencialmente com
achatamento de despesas, como se assim fosse possível melhorar a qualidade dos
serviços públicos e, numa outra face desse pensamento mágico, atrair
investimentos privados e promover o crescimento. Na prática, com a demanda
doméstica retraída e reduzidíssima propensão para investir no lado privado,
esses cortes tenderiam a deprimir ainda mais a atividade econômica, num momento
já de grave depressão por conta da pandemia. Mas nem mesmo parece verdadeiro o
pretexto central de toda essa argumentação supostamente “liberal”. O Brasil, na
verdade, apresenta uma carga tributária muito próxima à dos demais países “de
porte econômico semelhante”, mostram Deccache e Di Candia, percepção “ainda
mais forte” quando se considera a chamada carga tributária líquida, como se
poderá observar a seguir.

Balanço

·  
A
carga total de tributos líquida exclui todos os recursos repassados diretamente
ao cidadão pelo Estado, na forma de transferências de renda, a exemplo de
pensões e aposentadorias, programas sociais como Bolsa Família e outros
benefícios, assim como seguro desemprego e saques de recursos do PIS/Pasep e do
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Também são descontados os
subsídios concedidos pelo Estado ao setor privado, embutidos no crédito para o
setor habitacional, para a agricultura e para a indústria.

·  
Segundo
dados da Receita Federal, mostram Deccache e Di Candia, depois de todos os
descontos, o Estado de fato se apropriava, nos dados de 2017, de 14,4% do PIB,
abrindo mão ou repassando para aposentados, pensionistas, famílias mais pobres
e miseráveis, assim como para empresas e produtores rurais, algo como 18,1% do
PIB.

·  
Quer
dizer, proporcionalmente, o Estado brasileiro devolve aos cidadãos uma fatia
dos impostos e contribuições quase um quarto maior do que a arrecadação que
fica de fato disponível para manter todo o setor público funcionando, prover
recursos para saúde, educação, segurança, entre outros setores, e ainda bancar
investimento sem infraestrutura e nas demais áreas.

·  
Essa
diferença entre a carga bruta e a líquida (18,1% no caso brasileiro), demonstra
a dupla de economistas, é bem maior do que a diferença observada em outros
países. Conforme dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), essa diferença chega a 12,6% nos Estados Unidos, sobe para 16,8%
no caso de Portugal, gira em torno de 12,1% no Japão, 3,6% na Coreia do Sul e apenas
1,7% no Chile – o que se explica principalmente pelo fato de a Previdência por
lá ser inteiramente privada.

·  
“Isto
mostra que o valor do retorno dos tributos em porcentagem do PIB, observado no
Brasil, é superior a grande maioria dos países ao redor do mundo”, sustentam
Deccache e Di Candia. Vale dizer, o Estado brasileiro já faz “mais com menos”,
como defendem os “ultraliberais”.

·  
Adicionalmente,
prosseguem os economistas, numa comparação internacional, a carga líquida de
impostos no Brasil aparece como a segunda mais baixa numa amostragem que
considera a mesma relação em 13 países. Apenas os EUA apresentam carga líquida
menor, na faixa de 13,8% do PIB. Em Portugal e no Chile, a relação varia de
17,7% a 19,0%, atingindo 20,4% na Espanha, 21,7% na Coreia do Sul e 26,6% na
França.

·  
Se
a carga líquida representa, “em última instância”, o que resta de recursos em
relação ao PIB para financiar a prestação de serviços públicos, argumentam
Deccache e Di Candia, talvez devessem ser excluídos também os gastos com o
serviço da dívida pública. Em 2017, por exemplo, essa despesa representou 6,11%
do PIB. Quando descontado esse percentual, a carga líquida aproxima-se de 8,29%
do PIB. Quer dizer, o setor financeiro apropria-se de 42% da carga de tributos
líquidos ou quase 19% da carga total bruta.