Cegueira seletiva e pressões infundadas em defesa de um arrocho nas despesas

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 04 de novembro de 2023

A piora aparente nas contas do governo central (Tesouro, Banco Central e Previdência) e as declarações recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva rechaçando uma política contraproducente de arrocho fiscal atiçaram os ânimos do pensamento econômico mais conservador e rasteiro na autointitulada grande imprensa, incluindo colunistas badalados, nas consultorias a soldo dos mercados, no próprio setor financeiro e nas agências internacionais de classificação de risco – as mesmas que haviam referendado com seu selo a ganância especulativa que culminou na quebradeira global em 2007/2008. A cegueira seletiva daqueles atores tem impedido uma avaliação mais ponderada do cenário fiscal ao colocar o Brasil à “beira do abismo” econômico, ainda que os resultados observados nesta área nem se aproximem dos números ostentados por economias mais avançadas e mesmo por países ditos emergentes.

A reação histérica comandada por certo tipo de obscurantismo econômico sabe, mas faz de conta não reconhecer que os resultados do ano passado foram amplamente distorcidos pela ocorrência de receitas não recorrentes, associadas a políticas agressivas de distribuição de lucros e dividendos, sobretudo na Petrobrás, por ganhos com a liquidação/concessão de estatais e de serviços públicos e por aumentos extemporâneos nas contribuições devidas na exploração de minérios e petróleo. Em valores nominais, o resultado primário do governo central, que havia sido negativo em R$ 35,068 bilhões em 2021, aproximando-se de 0,39% do Produto Interno Bruto (PIB), apresentou superávit de R$ 54,104 bilhões no ano seguinte, correspondente a 0,55% do PIB – o mais elevado desde 2013, quando o superávit havia alcançado 1,35% do produto.

O superávit “falso”

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Num exercício aproximado, considerando a série histórica de dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), as receitas líquidas com dividendos, concessões e exploração de recursos naturais saltaram 106,53% em termos nominais entre 2021 e 2022, saindo de R$ 91,131 bilhões para R$ 188,215 bilhões. Caso aquelas receitas específicas tivessem repetido os números de 2021, o superávit alcançado no ano seguinte teria evaporado, tornando-se um rombo muito próximo de R$ 43,0 bilhões, algo ao redor de 0,43% do PIB daquele ano, o que reforça o caráter pouco sustentável do resultado fiscal colhido no ano passado. Especialistas em estatísticas e planilhas, economistas e consultores simplesmente não conseguiram identificar a atipicidade daqueles dados? Parece pouco crível. Assim como a histeria atual nada tem a ver com os dados da realidade, mas com interesses outros, de caráter político.

Balanço

  • A STN oferece um conjunto de estatísticas que, esmiuçadas com parcimônia, tenderia a desnudar uma situação fiscal longe de dramática, em meio a um processo de recuperação planejada de despesas com a (ainda) incipiente rede de bem-estar social no País. Os números finais refletem ainda a perda de receitas em relação ao ano passado, concentrada exatamente no retrocesso da arrecadação naquelas três áreas, motivado pela redução no pagamento de dividendos, nas receitas de concessões e na exploração de recursos naturais.
  •  Em valores atualizados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a receita líquida do governo central caiu de R$ 1,466 trilhão para R$ 1,410 trilhão em grandes números, numa baixa de 3,82% em termos reais, significando perda de pouco menos do que R$ 55,948 bilhões.
  • As três áreas consideradas mais acima responderam por 70,6% daquela perda, já que as receitas líquidas referentes a dividendo, concessões e recursos naturais encolheram 23,17%, saindo de R$ 170,535 bilhões para R$ 131,014 bilhões (ou seja, R$ 39,521 bilhões a menos).
  • As despesas totais avançaram a um ritmo de 5,22% depois de descontada a inflação, subindo de R$ 1,428 trilhão para alguma coisa ligeiramente abaixo de R$ 1,503 trilhão. A variação correspondeu a um acréscimo de R$ 74,545 bilhões na ponta dos gastos. A “gastança”, para repetir a terminologia escolhida pelo terrorismo fiscal e seu simulacro de debate econômico, ficou concentrada nos principais programas sociais bancados pelo governo federal, incluindo benefícios previdenciários, seguro desemprego, Bolsa Família, renda mensal vitalícia a idosos e deficientes, assistência social e gastos obrigatórios e discricionários com educação e saúde.
  • Na soma de todos aqueles programas e despesas, o governo central desembolsou perto de R$ 1,104 trilhão entre janeiro e setembro deste ano, o que se compara com R$ 992,959 bilhões nos mesmos nove meses do ano passado, a valores de setembro deste ano, numa variação real de 11,22% – ou seja, R$ 111,399 bilhões a mais. A fatia desses gastos no total das despesas avançou de 67,73% para 73,50%. Apenas o novo Bolsa Família apresentou um avanço real de 80,25%, com as despesas subindo de R$ 69,592 bilhões para R$ 125,439 bilhões (quer dizer, mais R$ 55,847 bilhões, metade do aumento acumulado pelas despesas sociais).
  • Todas as demais despesas encolheram 8,47% naquela mesma comparação, recuando de R$ 435,118 bilhões para R$ 398,264 bilhões, num corte de R$ 36,854 bilhões. As despesas com pessoal, num exemplo, recuaram 1,58%, saindo de R$ 259,863 bilhões para R$ 255,747 bilhões (em torno de R$ 4,116 bilhões a menos).
  • Os investimentos não apenas foram poupados de cortes como registraram um incremento real de 36,10%, elevados de R$ 31,085 bilhões para R$ 42,307 bilhões. O programa Minha Casa Minha Vida, que havia recebido minguados R$ 546,36 milhões entre janeiro e setembro do ano passado, foi contemplado com R$ 5,218 bilhões no mesmo intervalo deste ano, saltando 855,07%.
  • Nesse contexto, a “virada” no sinal do resultado fiscal parece ganhar outro significado, menos drástico do que insiste o terrorismo em voga. Neste ano, o governo central acumulou déficit de R$ 92,621 bilhões diante de superávit ao redor de R$ 37,871 bilhões nos nove meses iniciais de 2022.
  • Há uma dosagem de hipocrisia nas críticas endereçadas à atual gestão da área econômica. Considerando sempre o período entre janeiro e setembro de cada ano, os déficits colecionados entre 2016 e 2020 (neste último caso, por conta das despesas realizadas no enfrentamento da pandemia), ou seja, nos governos Temer e do inelegível foram maiores, atingindo em 2017, num exemplo, R$ 151,515 bilhões a valores de setembro deste ano, quando a grande mídia louvava a tal “Ponte para o futuro”, como parte do esquema armado para afastar uma presidente eleita.