Donos do dinheiro migram parte do patrimônio para fora do País

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 04 de setembro de 2021

Se a pandemia jamais ameaçou o bolso dos donos do dinheiro, as incertezas na economia, retroalimentadas pelas turbulências políticas produzidas em série pelos aloprados atualmente no poder, fizeram a turma da “bufunfa” colocar as barbas de molho. A parcela de seus ativos sob administração da indústria de fundos de investimento e desviada para fora do Brasil nos últimos meses vem crescendo desde o final de 2018 e registrou forte aceleração no ano passado, mantendo a tendência de aumento também neste ano. A realocação do patrimônio dos muito ricos, com a opção de aplicações no exterior, poderia estar relacionada a mudanças no cenário internacional ou a oscilações no câmbio. Mas a hipótese de que a “fuga para fora” tenha sido motivada também por incertezas domésticas e mesmo por manobras para reduzir o pagamento de impostos aqui dentro não deveria ser rechaçada, considerando que as taxas de juros permaneciam (e permanecem) muito baixas lá fora.

Estado realizado pela consultoria Economática mostra que os ativos administrados no exterior por fundos com sede no Brasil registraram salto de quase 190,0% entre dezembro de 2018, na sequência das eleições presidenciais, e julho deste ano. Em valores nominais, o saldo dessas aplicações no exterior aumentou de R$ 109,082 bilhões para R$ 316,282 bilhões naquele período e passou a responder por 5,24% da carteira total dos fundos (frente a 2,45% em dezembro de 2018). Foram R$ 207,20 bilhões a mais direcionados para o exterior desde o final de 2018.

Entre dezembro de 2018 e o mesmo mês do ano seguinte, o valor dos ativos alocados em aplicações no exterior cresceu 34,7%, para R$ 146,910 bilhões. Em dezembro de 2020, já alcançavam R$ 244,707 bilhões, resultado de um avanço de 66,6% em apenas 12 meses. Nos sete primeiros meses deste ano, mais R$ 71,575 bilhões migraram do País, elevando o patrimônio estacionado em ativos no exterior para aqueles R$ 316,282 bilhões, numa variação de 29,3% em relação a dezembro do ano passado.

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A força da grana

No segundo país mais desigual em todo o planeta, a movimentação dos muito ricos não deveria surpreender. Assim como a pressão exercida sobre o Congresso para impedir mudanças milimétricas na assombrosa concentração da renda no País. A reforma do Imposto de Renda (IR) trouxe sim a volta da tão reclamada taxação sobre lucros e dividendos distribuídos pelas empresas, mas criou tantas exceções que tornará praticamente inócua a medida, como ferramenta para correção mínima de desigualdades históricas na cobrança de impostos, abrindo a possibilidade da prática de “planejamento tributário” pelas empresas – nome sofisticado para a sonegação de impostos. A concertação entre políticos à direita e à esquerda para a aprovação da reforma esvaziou o mecanismo e, muito provavelmente, irá enfraquecer a briga política por justiça fiscal daqui em diante. Empresas que declaram o IR com base no lucro presumido e aquelas submetidas ao regime tributário do Simples, com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões, por exemplo, estarão isentas do imposto sobre a distribuição de lucros e dividendos, que teve a alíquota reduzida de 20% para 15%, ao mesmo tempo em que a medida aprovada reduz ainda o IR das empresas de 15% para 8% e corte de um ponto percentual na alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), atualmente em 20%. A Instituição Fiscal Independente (IFI) estima perda de receitas de R$ 28,9 bilhões apenas em 2022, com perdas acumuladas de R$ 52,2 bilhões entre o próximo ano e 2024, numa transferência renda para o setor empresarial, já que o “buraco” terá que ser coberto pelo restante dos contribuintes (seja por meio de corte de despesas e perda de qualidade dos serviços públicos, seja via aumentos de impostos ou contribuições).

Balanço

  • Enquanto os muito ricos avançam sobre a renda nacional, levantamentos recentes mostram o impacto causado pela pandemia sobre a população muito pobre. Entre outros motivos porque o governo e sua equipe econômica resistiram enquanto puderam a abrir os cofres para favorecer famílias mais vulneráveis. Os números mostram que embora o auxílio emergencial tenha contribuído para evitar um mergulho mais intenso do Produto Interno Bruto (PIB) não foi suficiente para impedir o agravamento da fome. Como diria a professora Maria da Conceição Tavares, pobre não come PIB.
  • Realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil mostrou um aumento de 85,4% no número de brasileiros em situação de insegurança alimentar severa, ou seja, passando fome literalmente. Esse número avançou de 10,3 milhões em 2018 para 19,1 milhões de pessoas em 2020. Esse contingente, que representava 5,8% da população em 2018, assumiu participação de 9,0%. Para comparação, o percentual de brasileiros com fome havia sido reduzido de 9,5% em 2004 para 4,2% em 2013. A alta registrada em 2020 significou um retrocesso de mais de uma década e meia.
  • Ao longo da pandemia, no entanto, a “riqueza financeira”, concentrada nas mãos dos donos do dinheiro, não parou de crescer, acumulando alta de 22,0% desde fevereiro de 2020, antes da pandemia, até julho deste ano, dado mais recente liberado pelo Banco Central (BC). Incluindo os recursos investidos na poupança, títulos públicos e privados, fundos de investimento e operações compromissadas (ou seja, com o compromisso de recompra pelo emissor), lastreadas em títulos privados e federais, o estoque desses recursos subiu de R$ 6,806 trilhões para quase R$ 8,305 trilhões.
  • Os números do BC indicam que essa montanha de dinheiro passou a superar todo o valor do PIB já nos meses seguintes à chegada da pandemia. Em fevereiro do ano passado, correspondiam a 93,0% de todos os bens e serviços produzidos no País, numa relação que atingiu 102,4% em julho deste ano.
  • Apenas entre fevereiro e julho de 2020, o saldo daquelas operações avançou 8,9%, atingindo R$ 7,411 trilhões, em valores aproximados, o que representou 103,3% do PIB. Em apenas cinco meses, a carteira de investimentos e aplicações financeiras recebeu R$ 605,130 bilhões, na fase mais crítica da pandemia em 2020. Entre dezembro passado e julho deste ano, mais R$ 499,342 bilhões ajudaram a engordar esse patrimônio, significando elevação nominal de 6,4%.
  • Para reforçar as disparidades entre os milhões de esfaimados e os mais ricos, o patrimônio líquido dos fundos de investimento, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), cresceu 16,53% entre agosto do ano passado e o mesmo mês deste ano, passando de R$ 5,771 trilhões para pouco mais de R$ 6,724 trilhões. O patrimônio investido em fundos offshore (ou seja, com sede em países estrangeiros) cresceu 9,74% no mesmo período, de R$ 58,054 bilhões para praticamente R$ 63,710 bilhões.