“Vida de cão”: o horror da casa em que autista foi encontrado abandonado

O irmão mais velho da vítima foi preso em flagrante pelos policiais na última terça-feira (10)

Postado em: 12-10-2023 às 08h00
Por: Ronilma Pinheiro
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O homem de 30 anos, portador do Transtorno do Espectro Autista (TEA) severo foi resgatado pela Polícia Civil de Goiás na última terça-feira (10) | Foto: PCGO

Era uma casa muito sem graça. Não tinha luz elétrica, nem água suficientemente encanada. Não parecia um lar. Sem sofás, geladeira, fogão. Sem gás. Sem lâmpadas. Sem mesas nem cadeiras. Apenas colchões rasgados, empoeirados sem condições nenhuma para que uma pessoa pudesse dormir. Camas sem lençóis, cobertores ou travesseiros. Paredes sem pintura, chão sem cerâmica. Paredes cinzas, de concreto, sem tinta, cor, ou quadros.

Era neste lugar que um rapaz de 30 anos, portador do Transtorno do Espectro Autista (TEA) Severo sobrevivia às dores do abandono afetivo. Ou abandono de incapaz, como define o Código Penal Brasileiro. Ele foi resgatado pela Polícia Civil de Goiás na última terça-feira (10). A vítima estaria abandonada pelo único parente, o irmão mais velho, de 32 anos.

O rapaz se sustentava com marmitas que vizinhos, inconformados com a sua situação, lhe entregavam por sobre os muros. Isto explica a quantidade de embalagens encontradas pela equipe da Polícia Civil na residência, tanto nos cômodos quanto no quintal.

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A PC tomou conhecimento do abandono após uma denúncia anônima de que o rapaz ficava até três dias consecutivos abandonado, sem comida, água e sem qualquer vestimenta. Ainda de acordo com a denúncia, a vítima já chegou a ficar mais de 20 dias sem tomar banho.

Ao chegarem no local, os agentes de polícia da Delegacia Especializada no Atendimento à Pessoa com Deficiência de Goiânia (DEAPD) encontraram a vítima em completo abandono, nua, sem qualquer tipo de alimentação. O local estava imundo, com forte odor de fezes humanas, as quais estavam espalhadas pela casa. “A casa não remetia a um lar, mas a um verdadeiro cativeiro”, conta o delegado titular da DEAPD, Alexandre Bruno.

A história fica ainda mais traumática quando a apuração da polícia revela que a mãe da vítima que cuidava dele, havia falecido há cerca de seis meses, e após a sua morte o corpo dela ficou mais de cinco dias no interior da casa sobre a mesma cama em que o filho autista dormia. Os vizinhos só descobriram que a mulher estava morta ao sentirem o mau cheiro exalado da residência. Para descrever a situação, o delegado não tem outra definição diferente do que dizer que o cenário lembrava à da vida dos “cães de rua”, onde o rapaz chegou a alimentar-se das próprias fezes.

Em decorrência do sofrimento, a vítima desenvolveu o que os especialistas chamam de mutismo transitório, quando o autista sofre um impacto emocional muito forte, ficando em estado de choque, o que o deixa incomunicável. Desse modo, o homem não conseguiu verbalizar os fatos para os policiais, que contaram com os relatos dos vizinhos para apurar o caso.

O irmão mais velho da vítima foi preso em flagrante pelos policiais, ainda na terça, durante a operação Cães de Rua, no Residencial Veredas dos Buritis, em Goiânia. Ele foi autuado por maus-tratos cometidos contra o seu irmão e também está sendo investigado por tortura psicológica. Segundo a PC, o homem possui várias passagens por tráfico de drogas e associação criminosa.

A polícia solicitou ao juiz que a prisão em flagrante fosse convertida em prisão preventiva, mas até a atualização desta reportagem ainda não havia um parecer final do juiz sobre o caso. Segundo informou o delegado, o homem passaria por uma audiência de custódia na tarde desta quarta-feira (11).

Enquanto o irmão mais novo era submetido a situações desumanas, o irmão mais velho vivia uma vida tranquila. De acordo com o delegado, o preso trabalhava como motorista de aplicativo e morava em um apartamento localizado a quilômetros de distância do setor onde fica a casa abandonada da família.

A vítima foi encaminhada pelo Serviço de Atendimento Móvel de Emergência (Samu) para receber atendimento médico. Agora a própria polícia civil vai tentar auxiliar o irmão mais novo a conseguir um auxílio do governo.

Esse tipo de crime é comum na delegacia, segundo Alexandre. “Somente nos últimos 60 dias nós já tivemos 16 flagrantes de abandono de incapaz e maus tratos”, afirma o delegado. Recentemente a forma investigativa da delegacia passou por alterações segundo o delegado, e as denúncias que antes demoravam entre 48 horas e três dias para serem efetuadas, agora são imediatas.

“Agora quando a notícia crime chega na delegacia envolvendo maus tratos, lesão corporal, tentativa de homicídio ou tortura, imediatamente a equipe multidisciplinar é acionada para ir ao local”, detalha. Com a nova metodologia, os policiais têm se surpreendido com os casos que chegam na delegacia no dia a dia. “São casos horrorosos”, diz Alexandre.

Impactos do abandono e maus tratos em quem tem Transtorno do Espectro Autista (TEA)

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição neuropsiquiátrica que afeta o desenvolvimento, influenciando a interação social, comunicação e comportamento do indivíduo, afirma a Psicóloga Julia Caixeta. O transtorno é caracterizado por uma ampla gama de sintomas e níveis de gravidade, formando um “espectro” de manifestações. “Cada pessoa com TEA é única, com desafios e habilidades distintas”, diz a especialista.

O psiquiatra Clínico e Forense, Ciro Mendes Vargas, acrescenta que o TEA gera várias alterações cognitivas no indivíduo, entre elas há as alterações graves na comunicação, e isso envolve tanto o se comunicar bem quanto o entender a comunicação do outro. “ Empatizar, entender o que o outro está pensando, que é uma capacidade humana, que ele tem muita dificuldade, de socialização também”, explica o especialista.

O abandono e os maus tratos produzem consequências drásticas na vida de qualquer indivíduo. Quando cometidos contra uma pessoa autista, as consequências são ainda piores, segundo o psiquiatra. “Ele é um indivíduo mais suscetível. Isso para ele tem realmente um peso maior, já que ele não tem aparato cognitivo para entender a situação que está acontecendo”, explica. “Isso pode gerar trauma, alterações afetivas e ansiedade. Além disso, essa situação de estresse pode fazer com que ele desenvolva sintomas depressivos e ansiosos e agitação psicomotora”, acrescenta.

Da mesma forma, é com o luto. Quando perde a pessoa amada, que mais cuidava dele, como é o caso da vítima resgatada pela polícia, o autista não sabe lidar com a situação da perda. “Ele não sabe trabalhar aquilo que todo mundo morre, que uma hora ou outra poderia acontecer isso, que ele tem que procurar alguém para cuidar dele”, explica.

A psicóloga Júlia Caixeta relaciona o fato da vítima não conseguir falar com a polícia sobre o ocorrido, a um provável bloqueio emocional em decorrência de tudo que viveu, para além do diagnóstico de TEA. “Isso geralmente ocorre quando estão expostos a momentos de angústias e crises. E também pela falta de apoio emocional”, explica a psicóloga.

Nesses casos, Júlia aconselha que seja utilizado um método de comunicação alternativa denominado PECS, ou seja, por meio de figuras, para que a vítima possa dizer o que está sentindo e aprenda a se comunicar de forma funcional.

O tratamento também deve ser personalizado, segundo a especialista, abordando as necessidades específicas dessa pessoa. “Terapias como ABA e suporte psicológico com uma boa equipe multidisciplinar como psicólogo, fonoaudiólogo, terapia ocupacional e outros, podem ser essenciais para reconstruir a confiança e promover o bem-estar emocional da vítima a partir de agora”, detalha.

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