Se numa antiga manhã de outubro eu saísse

Nove escritores convidados contam histórias que os ligam à nonagenária Goiânia

Postado em: 24-10-2023 às 13h00
Por: Redação
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Foto: Hélio Oliveira/Secult

José M. Umbelino Filho

Se numa antiga manhã de outubro eu saísse a passear, e deixasse a Vila Monticelli, velha casa de meus pais, e subisse a rua que ladeia o parque agropecuário, teria encontrado, quiçá, o passado e o presente unidos num sonho? Poderia flanar pela cidade que vi e por aquela que apenas imaginei? Antes da ponte, toparia as barracas improvisadas e as bugigangas improcedentes da feira da marreta, ou chegaria a tempo de ouvir o apito do trem que um dia passou onde hoje é ausente? 

E se cruzasse a ponte e tomasse a Independência, veria então a vertiginosa sequência de moças bonitas em biquínis e moços de barbas bem feitas saltando do néon das propagandas da Quarenta e quatro, enquanto milhares de sacolas se enchem e se esvaziam de roupas e desejos; ou então, se não, talvez passasse a tempo de ver o que havia muito antes. Meu pai menino, na década de 1960, tomando banho no João Leite quando ele curvava logo ali, no Norte Ferroviário, onde hoje se ergue um império de nylon, algodão e poliéster. 

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Ou se voltasse caminho, e retroceder os passos de minha infância, subindo a Quinta Avenida chegasse à Vila Nova, poderia ainda divisar o bom baiano Boaventura, vereador analfabeto e amado pelo povo, discursando sobre um banquinho improvisado, ou então veria a praça que lhe eternizou o nome, com suas árvores sobranceiras e assombrosas, onde eu menino, dez anos de idade, comia pastel e vitamina de abacate, sentindo o cheiro ocre dos rolos de fumo e dos sapatos de couro vendidos no mercado. Mas se fosse uma manhã de sol, de céu azul santificado, talvez eu olhasse de soslaio e teria avisado, ruas abaixo, minha mãe adolescente, bela e esfuziante, migrante do interior, entrando uniformizada no Colégio Carlos Chagas.

Talvez quisesse segui-la, fosse uma manhã bonita assim, e me permitisse subir umas ruas acima, até a Anhanguera, para esperar o monstro azul passar no eixo, levando em sua barriga os trabalhadores cansados que ele engoliu na Praça da Bíblia ou mais distante, ou testemunhar o que havia antes: minha avó Maria – brava Maria sem marido para cuidar dos oito filhos – descer da condução em direção à Saneago com uma cesta de biscoitos e roscas polvilhadas de açúcar para vender a funcionários públicos esfomeados;  ou então, um piscar de olhos antes, larga avenida poeirenta, batida sob o casco do cavalo de Ludovico, velha artéria da nascente capital, picada de palacetes e armazéns  – o Leste Universitário acima deles! 

Ah, se numa antiga manhã de outubro eu pousasse às portas da Marieta Telles, quanta coisa veria passar! Minha reles juventude de estudante, a bolsa a tiracolo, perseguindo aulas e poetas diletantes, sonhando o futuro nessa cidade incólume – ou antes ainda, meu pai cabeludo ouvindo Chico e fugindo dos milicos na faculdade de arquitetura, onde outros cabeludos sonhavam uma Goiânia futura: casas de vidro, bauhaus, niemeyer, praças internas do Setor Sul. 

E no Setor Sul, se numa antiga manhã de outubro eu pudesse reaver o vazio perfeito entre as casas e os jardins, as árvores escondidas em bolsões de silêncio, e velhos jovens a grafitar rostos enormes nos muros – talvez entrevisse no meio deles a figura nobre de um karajá: a cara pintada, o peito nu, uma borduna nas mãos – e seria aquela visão o presente ou o passado? 

A cidade se constrói sobre si, sobrepondo camadas de tempo e memória, aproveitando as próprias imperfeições, como um coral. A cidade se confunde com o corpo de quem a habita, sua história é a história brilhante, viva, triste ou alegre, infinita, de quem, numa manhã de outubro, resolva sair a passear. Mas, o mais importante, é preciso sair a passear.

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