Um presente para Marta

Nove escritores convidados contam histórias que os ligam à nonagenária Goiânia

Postado em: 24-10-2023 às 13h00
Por: Redação
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Foto tirada em Tenente Portela (RS) antes da mudança para deixar de recordação aos parentes que ficaram. Da esquerda pra direita, em cima: os filhos Noeli, Marli, Aldo, Ildo, Sueli e Guido. Embaixo, Rosemari, vovó Marta, Ane, vovô Augusto, Ema e Ernesto | Foto: Arquivo Pessoal

Maria Clara Dunck

No calor quase insuportável de outubro, aproxima-se o aniversário de Goiânia. Com a capital prestes a completar 90 anos, eu conversava com a minha mãe sobre achar curioso que a vovó Marta nasceu no dia 24 de outubro de 1933. Mesmo dia e ano que a fundação da cidade onde a gente mora.

Vovó Marta mora no Mato Grosso desde 1973, quando saiu de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, para Canarana, na política da Marcha para o Oeste. De lá pra cá, a família cresceu e boa parte acabou se estabelecendo em Goiânia, principalmente para estudar, e por aqui ficou, inclusive eu e minha mãe. Mas ainda não tinha ouvido da vovó a história de quando ela esteve pela primeira vez em Goiânia, o lugar com que ela tem essa conexão tão interessante. Então ligamos pra ela a fim de descobrir que foi justamente na mudança do Sul para o Centro-Oeste que vovó conheceu a capital.

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Agora, com quase 90 anos, a imagem dos pés de flamboyant emoldurando a Avenida Anhanguera é uma das primeiras memórias da vovó Marta a respeito de Goiânia. Naquela passagem aqui, há meio século, foi uma sensação de alívio ver tanta beleza depois de todos aqueles dias na estrada. 

As copas baixas e exuberantes prenderam a atenção da minha madrinha Ane, na época com ainda com 11 meses de idade, que por alguns minutos se acalmou no colo de sua mãe. Duas noites atrás, haviam dormido num acampamento no interior de São Paulo e se encheram de pulgas, cujas mordidas ainda provocavam muita coceira. Ver uma cidade, assim, tão moderna e cheia de movimento, conseguiu distrair todo mundo dos incômodos daquela mudança. 

Carros coloridos contrastavam com o caminhão velho e pesado, cuja carga era nada menos que tudo que vovó acumulou em 40 anos de vida. Esposo, dez filhos, alguns móveis, roupas, pães, salames e galinhas. O resto tinha ficado lá no sul. Assim como as primeiras favelas, para onde seus antigos vizinhos já começavam a se mudar por conta da falta de terras. Era ir pra lá também ou partir para outro lugar. E lá estava toda a família no caminhão, em busca de alternativa.

Só que logo a beleza daqueles flamboyants deram lugar ao medo, com seus galhos sufocantes. O caminhão não vai passar, gritou vovô Augusto. E todo mundo se agitou novamente. O jeito foi procurar outro caminho, e a chegada no Mato Grosso parecia ainda mais distante. Não estava nos planos passar tantas horas em Goiânia, mas não foi fácil atravessar aquele caminhão por ruas tão arborizadas. 

Naquela época, a capital era nova demais, com um projeto paisagístico novo demais. Daí que tiveram de se aventurar por outras ruas, dentro da cidade grande. Além das árvores, os fios elétricos também causaram uma enorme apreensão.

Enfim Goiânia também foi desbravada, e à medida que ficava para trás, o medo também diminuía. E vovó, que até então só conhecia plantas e bichos, retomava o fôlego revendo tanta terra à sua frente. A viagem vai continuar e finalmente vamos conseguir um lugar pra plantar, ela pensava. Mas ainda havia um posto policial antes de deixar definitivamente Goiânia, e tiveram de parar novamente. Segundo a vovó, nessa hora, foi preciso liberar quatro galinhas para que a viagem continuasse.

— As galinhas foram uma forma de agradecer pela passagem — disse minha mãe.

— Deixa a vovó contar. – eu respondi, entendendo outra coisa da história.

— O caminhão daquele jeito que estava, cheio de coisas e gente, não ia passar. O que me lembro é que nós ficamos sem galinhas. Aí passamos —  vovó explicou.

— Então foram embora quatro galinhas e a viagem seguiu — resumi.

— E seguiu como seguia toda vez que a gente parava. Alguém gritava: força, pessoal, que esse Brasil é grande! Aí o caminhão andava — disse vovó, rindo.

Depois de ouvir a história de como vovó Marta conheceu Goiânia, minha mãe e eu conversamos sobre a galinhada. Aqui se usa bastante açafrão. Na versão que a gente aprendeu com a vovó não vai o tempero, mas é mais molhadinha. Talvez façamos galinhada no feriado de aniversário. Do tipo molhadinha e com açafrão.

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