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Nove escritores convidados contam histórias que os ligam à nonagenária Goiânia

Postado em: 24-10-2023 às 13h00
Por: Redação
Imagem Ilustrando a Notícia: GYN90
Foto: Hélio de Oliveira

Maria Clara Cardoso

Essa Goiânia, de onde escrevo, a qual agora se escreve assim e já se escreveu com ípsilon, e já foi uns dois anos sem nome também… Até resolverem com um “link na bio!”, ou o equivalente da época. Essa cidade de nome, qual é? de identidade? É uma? ou duas? contando Aparecida… Goiânia múltipla. Massacrante. Massacrada também. Se fosse minha essa rixa, se essa rua fosse minha… Esse céu cerratense, Goiânia: de lixo, de sangue, de gasolina, de sonho. De médicos e engenheiros civis. Funcionários públicos, maravilhas. Se fossem meus esse sangue, esse cargo, esse topônimo: GOYANIA.

Esse topônimo, poema: Goiânia. Esse sol de fogo. Se eu olho pra terra, pros bichos, se eu penso nos olhos pretos-castanhos-esverdeados dessas árvores, desses jacarandás – a beleza das sementes desses jacarandás e das mulheres que nasceram desses jacarandás, viveram debaixo desses jacarandás, lavaram roupas nesses jacarandás pra que eu possa catar uma semente aqui do lado, nesta biblioteca, nesse andar, na Universidade Federal de Goiás.  — minhas guardiãs, minhas ancestrais — Goyaz, Goyaz. Se eu pensasse no agora, viveria Goiânia momentum. Penso: eixão, faca na carne dos bois desavisados, Goiânia é um sinal. Divino? patriarcal? imaginário? definitivamente mitológico.

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Outra coisa é o dialeto. Explico: só beijo línguas que me engambelam no R retroflexo. Me perguntam o que isso significa mais de uma vez por semana, os goianos que não amam seus erres. Goiânia-progresso, Goiânia-dentro, profunda no meu gesto. Lugar mórula, multiplicando nossas células jovens, que são como nossos pais e se ainda somos os mesmos e vivemos como eles, desse sufoco meio mágico dos símbolos – persistimos: na cidade-célula-tronco e no ink, hip-hop. É que eu sou da Goiânia do Bar da Tia, Feira das Minas, aqui tem 90 anos e eu nasci no meio desse talho – e construo. Essa cidade é nossa – massinha de modelar – a gente se diverte no futuro, e no passado. Daí vem meu amálgama: Goi(y)á(z)s, aqui no peito. Propaganda, comunicadora mesmo: sangra pra todo lado e sentido, nasceu atrasada pros nomes e profunda na história e me carrega, cada passo do meu verso é goianiense.

Essa minha cidade-sobrenome, das oligarquias, essa minha cidade-bandeirante: ruas, esquinas, avenidas. Cidade ebulição: asfalto quente, cenário musical independente, eu tenho um sonho pra esse lugar. Invento na certidão de nascimento: você é brasileira ou goiana? Sou cerratense. Antes-depois-tempo, e não esqueço os jacarandás. Se eu existisse em outro lugar, se eu carregasse melhor essa bandeira amarela, azul, branca e verde. 

O que faço é pesquisar tatuagens de flor de pequi na internet. Goiânia tem 90 anos, daqui eu vim e de cá eu broto todo dia, com minhas bochechas viçosas, maçãs do rosto, com meus amigos e meus jogos de tabuleiro, eu nasci, de certa maneira, das cidades dos outros: Vila Boa, Pirenópolis, Ituiutaba, Tocantins. 

E o tempo veio rolando feito as cachoeiras… agora é feita e se faz com os bares que fecham e abrem, com esse show do Roger Waters rolando aqui do lado e também o transporte público que não funciona direito, e tenho que pegar pra chegar até a Letras e ensinar as crianças a escrever o cabeçalho: Goiânia, Goiás. As coisas saem e voltam pro mesmo lugar, esse é o remorso.

Meu xodó mais odiado tá fazendo aniversário e renova a cada passo que eu respiro – eu sinto. Tem muita opinião dividida sobre isso, sobre aqui. Meio oito ou oitenta, eu hesito entre os extremos. Repito: nem goiana, nem brasileira: cerratense, isso porque eu sou charque do sertão, suco de cajuzinhos vermelhos, mas minha médica só atende no edifício New Times Square, ali perto do Madero, onde moleques do ensino médio – do Bueno — estraçalham um bife ancho numa terça-feira. Violenta e desigual. Sufocante também. E profundamente nossa, essa marca: bichos-do-mato andando de carro? Somos.

Eu olho pras aves que já tinham nome antes da cidade. Se eu me escondesse menos, desse tempo, nesse conjunto Itatiaia, se não tivessem aberto um Starbucks no Flamboyant Shopping, se minhas amigas pensassem menos em tatuagens e mais em O Tronco do Bernardo Élis, então eu viveria menos na ideia da tatuagem da flor de pequi e mais perto do mistério dos rios. Aí talvez eu fosse mais goiana, talvez fosse mais rica essa crônica, de conhecimento ancestral e sertanejo, com cheiro de maxixe e quiabo, refletidos nas mãozinhas envelhecidas das minhas avós. De cá não são, pra cá vieram. Goiânia não tem idade pra ser terra de bisavó, mas Goiânia se atreve.

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