A mulher que há 35 anos limpa túmulos no Cemitério Santana

Astenilia Maria ganhou casa do então governador Iris Rezende enquanto limpava sepulturas e não abre mão de continuar trabalho às vésperas do dia 2

Postado em: 02-11-2023 às 07h30
Por: Yago Sales
Imagem Ilustrando a Notícia: A mulher que há 35 anos limpa túmulos no Cemitério Santana
A mulher que há 35 anos limpa túmulos no Cemitério Santana  | Fotos: Leandro Braz / O Hoje

Dois coveiros conversam amenidades enquanto um terceiro limpa a enxada em frente às velas no Cemitério Santana, o mais antigo de Goiânia, quando Astenilia Maria Ribeiro, de 63 anos, passa por eles carregando um balde com detergente e panos. Com o auxílio da filha, Schayane, leva também um rodo e uma vassoura. 

Há 35 anos Astenilia percorre os túmulos e, de cabeça, numa memória que reconhece o endereço de qualquer uma das últimas moradas dos mais de 50 mil sepultados, encontra aqueles pelas quais foi contratada para retirar capins, varrer e lavar para deixar tudo limpo às vésperas do Feriado de Finados, no 2 de novembro. 

Astenilia Maria se antecipa há 35 anos. Liga e marca serviços de limpeza às vésperas do feriado | Leandro Braz / O Hoje

Ao mesmo tempo em que limpa as placas de bronze com nomes, datas de nascimento e morte da família Jorge, Astenilia foge à pergunta sobre quanto recebe por cada trabalho, mas cede: “ Vareia, né? Tipo assim, esse aqui, por exemplo, 80 reais”. E revela que, neste ano, deve limpar uns 30 porque tem um hábito que pratica desde que começou a fornecer a mão de obra em 1988. “Anoto o telefone e ligo todo ano”, conta ela. 

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Ela cita que o fundador de Goiânia, Pedro Ludovico Teixeira, é uma das personalidades sepultadas no Santana. “Eles têm a zeladeira, mas quando veem a gente pedem pra dar uma limpada, jogar uma água”.

Sem perder o foco do esfregão, conta que cuida de túmulos de pessoas que conheceu em vida. Um deles é um antigo vendedor de velas do próprio cemitério e do ex-governador e ex-prefeito Iris Rezende Machado. “O dele eu limpo até de graça”, conta ela, com o rosto contra o sol, encarando o repórter. 

E a história rende: “Quando eu comecei, eu tinha 30 anos. Morava de aluguel e vi que se a gente oferecesse para limpar [os túmulos] podia ganhar uns trocados. E um dia eu vi o Iris [que era governador] aqui. Ele ouviu minha história, que tinha filhos pequenos, que morava de aluguel aqui em Campinas. E ele pediu para o major, um assessor dele, que pegou meu contato. Depois recebi uma ligação e ganhei uma casa em Senador Canedo”.

Na rotina de cuidados no Cemitério Santana, Astenilia conseguiu ganhar uma casa do então governador Iris Rezende | Foto: Leandro Braz / O Hoje

A filha Schayane Ribeiro acompanha a mãe, mas não quer aparecer em fotografias. “A gente nunca deu entrevista. É a primeira vez que a minha mãe fala”, conta Schayane, se desviando da lente do fotógrafo, mas ajudando a mãe a se lembrar de histórias pelas quais passaram entre os túmulos do primeiro prefeito de Goiânia, Venerando de Freitas Borges, do fundador de Goiânia e ex-governador Pedro Ludovico Teixeira. 

Por ali também estão os restos mortais do famoso alemão padre Pelágio Sautter e da esposa de Iris Rezende, a ex-deputada federal Dona Iris. Entre um túmulo e outro, a art decó inspirou túmulos e faz presença nos muros e portões. É uma arquitetura reconhecida como patrimônio cultural do município. 

Astenilia não sabe nada de art déco senão que o formato das coisas, como cruzes, anjos, santos, são diferentes. Mas sabe que ali é um ambiente de homenagem, a manutenção da história de quem um dia foi e, de alguma forma, permanece importante. A lista é grande. De políticos, como o ex–senador Alfredo Nasser; empresários, como o Jaime Câmara e estrelas da televisão, como o coronel Hipopota, que animou plateias em programas em Goiás quando a TV ainda era preto e branco. 

Atividade vem passando de geração e geração na família de Astenilia | Fotos: Leandro Braz/ O Hoje

De avó aos netos: compromisso com quem fica

“A gente gosta do que faz aqui”, justifica Astenilia, antes de se queixar que a filha não tenha assumido a atividade de vez para lhe dar um descanso. “A gente vai fazendo e não tem como deixar de vir todo ano”. A limpeza dos túmulos também passam por gerações. “Tenho netos que gostam muito de ajudar. Ficam mais animados do que eu”, lembra. 

A estratégia da mulher é simples. Duas semanas antes do feriado começa a labuta de ligar às dezenas de contatos que foi angariando nas últimas três décadas. Lembra-os de que ela poderia limpar os túmulos. Se encontra algo mais sério, como um mármore descolado, quebrado ou percebe que simplesmente desapareceu, ela liga ao familiar e faz um orçamento. “Eles compram o material e eu consigo a mão de obra”, conta ela. 

Na medida que os anos vão passando, alguns contratantes acabam morrendo por conta da idade. E Astenilia tem a difícil missão de checar nos túmulos nomes e fotos emolduradas em bronze de quem não responde mais às mensagens. Ou aos telefonemas. É o caso de uma que morava em Brasília, mas sumiu. “Pelo tempo de contato, se a cliente tiver morrido, terá sido enterrada por lá mesmo”, propõe ela, antes de começar a esfregar a cruz de granito rosa. “Ela estava muito idosa e toda vez que vinha visitar o túmulo me trazia presentes”. 

Sob o sol com temperatura de 38 graus de um dia da semana do 2 de novembro, Astenilia transpira enquanto para, pensa, e relembra de um ou outro contato que poderia lhe render uns trocados a mais. 

Espremendo a esponja de aço, ela reflete sobre a própria história. Na biografia, consta a maternidade, a rotina de diarista em residências de bacanas e o que pôde fazer com o que conseguiu receber como renda extra nos últimos 35 novembros. De uma mesa nova, roupas, peru no natal e presentes aos filhos e netos. 

Mesmo durante os anos mortais da pandemia de Covid–19, Astenilia, amparada pela segurança das máscaras, conseguiu exercer um importante papel para a manutenção da dignidade de homens, mulheres, crianças ou velhos, enterrados por ali. 

Ao terminar o túmulo, mais um, ela dá uma olhada ao redor, mira para um jazigo. Segue carregando o balde com água, o rodo e a vassoura. Antes, ela respondia a uma pergunta que poderia ser incômoda para a maioria das pessoas. O que acha da morte? “Não quero morrer ainda não. Quero limpar muitos túmulos ainda”, diz Astenilia, antes de gargalhar e seguir para o próximo sepulcro cercado de matagal e lápides empoeiradas.

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