Feliz Natal? Não para todos

Nem banquetes nem a mensagem da importância do nascimento de Cristo chegam devidamente a todos os esfomeados de estômago e alma

Postado em: 25-12-2023 às 09h00
Por: Yago Sales
Imagem Ilustrando a Notícia: Feliz Natal? Não para todos
Depois de receber notas para comprar marmitex ao amigo, o homem pediu para sair na revista Veja | Foto: Leandro Braz/O Hoje

Podia ter perguntado ao fotógrafo Leandro Braz Leandro (sim, como uma rotatória, indo e vindo, dois leandros) o que ele escreveria no cartão de Natal para aquele homem com odor de 51, suor, urina. 

Ele disse que se deixaria fotografar, mas se saísse na Revista Veja para ele contar como, um dia, deu um beijo na Adriane Galisteu ou quando evitou que um bandido matasse Fernando Collor de Mello com uma gauchinha. Ou quando subiu nas costas de um anjo para falar poucas e boas a Deus. 

Um cartão de palavras de esperança ao homem de palavras desconexas. Talvez nem conseguiria entregar o cartão ao remetente sem nome, endereço fixo ou documentos. O homem fotografado é clandestino, distante demais, inencontrável dentro de si. 

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Debaixo das marquises do Centro de Goiânia, numa Avenida Goiás constantemente em obras, aquele homem é fotografado enquanto recebe notas de R$20 e R$5 de uma senhora bondosa – lá por setembro ou outubro – para comprar marmitex para ele e para outro homem logo ali, deitado debaixo de um lençol sujo, escondendo as feridas nas costas que cabem uma lata retorcida para o consumo de crack. A única vida ali, além do coração muito surpreendido por não ter parado ainda, é a luz da tornozeleira eletrônica. 

Dois homens. Um quase-morto sem qualquer chance de escapatória nem se lembra do aniversariante enquanto o outro, que também não se lembra do menino de Belém, do pequeno Nazareno, se arrepia, se estremece. Quer mais pinga. Este que aparece na foto com olhos esbugalhados, conversa desconexo, sem se autodefinir, apenas um corpo que perambula em meio às idiossincrasias de um Centro que, na verdade, é margem com as pessoas em situação de rua. 

Pessoas em situação de rua é como relatórios classificam esfarrapados, esfomeados, sós que – não andam – rastejam entre um banco de madeira e o sinal em busca do colo de Filho de Deus. Ou da assistência de um sistema de saúde mental. 

Ali no Centro, que o prefeito quer requalificar, o Natal vermelho e verde das lojas de 1,99 – elas ainda existem? – se contrasta com os olhos que mendigam não apenas do pão que alivia a vontade da carne, do estômago, mas o Pão da Vida, das palavras carregadas de verbos do aniversariante. 

Por isso Leandro Braz Leandro arranca a câmera do descanso, aponta e flagra uma mulher com mãos para cima, orando, suplicando, dizendo algo, quase como Ana pedindo um filho ou Daniel fugindo dos Leões, ou o próprio Cristo, já crescido, pedindo para o Pai, se possível, afastar dele o cálice – a crucificação. 

À distância, diante da dor desesperada daquela mulher, Leandro registrou outra forma de mendicância: aquela que extrapola as necessidades terrenas e vai à esfera espiritual. “Me ajuda, Deus. Não tem mais jeito. Me ajuda, menino Jesus. Eu preciso de ti”, teria dito ela em segredo, numa oração tão silenciosa quanto imponente.

Mais adiante, dentro do Gol bola branco sem ar-condicionado, fritando os miolos, outra vez Leandro Braz Leandro vê com olhos de quem sabe que o editor dele vai precisar um dia daquela história sem palavras, sem nomes, sem data de nascimento, fotografa. 

Dois homens e uma caixinha de jujuba. Dois viajantes deste mundo. Dois peregrinos. Um oferece o doce no sinaleiro e outro empurra a cadeira de rodas que o primeiro passa a maior parte do tempo preso. Os dois aparecem no visor da câmera de Leandro, que guarda o registro. Sabe que, de alguma forma, em algum dia, vai usá-la em algum canto neste jornal. 

Dias depois, Leandro ouviu do editor: registre o que há de mais terrível no trânsito da cidade que estampa capas de jornais especializados em economia pelo sucesso do agro, do sertanejo e do setor imobiliários – atrelado ao mercado de luxo. E ele apareceu no jornal cabisbaixo: “aqui”. E a menina com cara de fome surgiu ao lado do homem esquálido, segurando o pedido escrito à mão em um papelão: “Peço sua ajuda para comprar alimentos para meus filhos. Que Deus abençoe. Feliz Nataz”.

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