Em releituras de brasileiros, cantores portugueses celebram o amor em dicos

Em releituras afetivas, os cantores portugueses Carminho e Antônio Zambujo homenageiam Chico Buarque e Tom Jobim. No Brasil, Silva recria as canções de Marisa Monte

Postado em: 04-01-2017 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Em releituras afetivas, os cantores portugueses Carminho e Antônio Zambujo homenageiam Chico Buarque e Tom Jobim. No Brasil, Silva recria as canções de Marisa Monte

Júnior Bueno

Um disco que tem como objetivo mostrar a obra de um artista através do recorte e da interpretação de outro é, ao mesmo tempo, uma aposta certeira e arriscada. Quando se apresenta ao público novas versões de canções que ele já ama e conhece, existe um risco, mesmo que pequeno de não agradar. O álbum Aqui, Ali, em Qualquer Lugar de Rita Lee, em homenagem aos Beatles é um exemplo do que deu errado. Ao mesmo tempo, as canções de Roberto e Erasmo Carlos nunca soaram tão belas como no álbum As Canções que Você Fez pra Mim, de Maria Bethânia. A releitura de Ney Matogrosso para as músicas de Cartola também chega a esbarrar na perfeição, assim como Cássia Eller foi atingida pela genialidade ao reviver a rebeldia de Cazuza. 

Três álbuns que chegaram às prateleiras recentemente também se dedicam a prestar tributos: a fadista portuguesa Carminho, já íntima do Brasil, foi beber da água de Tom Jobim; seu patrício Antônio Zambujo canta as canções de Chico Buarque e, em um tributo apaixonado, o cantor Silva dedicou um álbum inteiro às canções de amor de Marisa Monte. Os três, com resultados satisfatórios, apresentam tributos reverentes, porém criativos aos mestres.

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Fado tropical

Lançado no Brasil em dezembro de 2016, o álbum Carminho Canta Tom Jobim foi gravado no estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro. O álbum foi idealizado pela família de Tom, e a última banda de Jobim, a Banda Nova, toca no álbum da cantora portuguesa. Com toques de músicos como Paulo Jobim (violão), Jaques Morelenbaum (violoncelo) e Paulo Braga (bateria), além do pianista Daniel Jobim, neto do maestro, Carminho dá voz a 14 músicas do soberano cancioneiro de Tom.

Fernanda Montenegro participa do disco, recitando versos da Canção do Exílio (do poeta maranhense Gonçalves Dias) na canção Sabiá. Da parceria de Jobim com Chico Buarque, Carminho aborda os tons impressionistas de Retrato em Branco e Preto. Chico também figura no disco em Falando de Amor, em que participa como cantor, embora seu registro mostre uma voz um tanto fanha do compositor. Já Marisa Monte percorre os trilhos suaves de Estrada do Sol, canção de Jobim com Dolores Duran. Desta parceria, Carminho também interpreta Por Causa de Você, mas na versão em inglês intitulada Don’tEver Go Away, porque o pronome você é incomum no português falado em Portugal.

Maria Bethânia completa o time estelar de convidados do álbum, cantando Modinha com Carminho. O repertório também inclui a valsa Luiza, Meditação e Wave, além de O Grande Amor, música menos ouvida dentre as 14 selecionadas para o álbum. A fadista nem sempre consegue imprimir a leveza necessária para temas leves como Wave. Mas quando se dedica à canções pungentes como Retrato e Branco e Preto ou O que Tinha de Ser, mostra uma interpretação poderosa.

Homenagem ao malandro

Mais inspirado e autoral, o português Antônio Zambujo se apropria das canções de Chico Buarque com bastante maestria. Quando se ouve o alentejano cair com desenvoltura no samba Injuriado, como se fosse quase um carioca da gema, fica fácil entender porque seu álbum se chama Até Pensei que Fosse Minha. Extraído de verso da modinha Até Pensei, o nome faz sentido porque o intérprete lusitano tomou para si essas 16 canções do carioca como se de fato elas fossem dele. 

Não é o fadista contemporâneo que canta Chico, embora o clima melancólico do fado permeie Folhetim, (em que Zambujo assume a persona feminina do tema)e a mencionada Até Pensei, tristonha pela própria natureza. Até o sotaque português soa menos evidente na interpretação da cortante Cálice, feita de início a capella e, depois, com arranjo que procura as dissonâncias, os caminhos tortos, para realçar a tensão incômoda do tema.

Os sopros inusitados dos metais que lançam Futuros Amantes em outros mares harmônicos já dão a pista do respeito sem cega reverência de Zambujo pelas canções de Chico. Diretor musical e arranjador de Até Pensei que Fosse Minha, o violonista Marcello Gonçalves teve papel fundamental para que Zambujo não fosse mais um cantor a gravar Chico. Mesmo que falte picardia ao canto de Zambujo para retratar toda a perversidade humana contida na trama surrealista de Geni e o Zepelim, por exemplo, os arranjos de Gonçalves sempre afastam o álbum do lugar-comum.

Gravado com a presença de Chico no estúdio, o álbum tem aval, sugestões e a voz do compositor homenageado. Além de cantar Joana Francesa com Zambujo, em dueto mais terno do que sensual, Chico sugeriu para o repertório composições mais recentes – Cecília e a valsa Nina, mais especificamente – de fase em que a obra do compositor perdeu a conexão com o povo do Brasil, inclusive por conta da diluição do mercado fonográfico.Carminho põe intensidade à flor da pele nas partes que canta no dueto feito com Zambujo no sensual bolero O Meu Amor. Quase no fim do disco, Tanto Mar reforça o elo do cantor português com a terra natal em interpretação que poderia soar mais vivaz para entrar em sintonia com o arranjo efusivo da passagem instrumental da faixa.

Amor, I loveyou

Em Silva Canta Marisa, disco produzido em estúdio pelo artista com o guitarrista Rodolfo Zamor, o cantor tem à disposição 12 canções da melhor safra pop de Marisa Monte. Uma é inédita e abre oficialmente a parceria de  Silva e seu irmão Lucas Siva com a cantora e compositora carioca. Gravada com a voz lapidada de Marisa, Noturna (Nada de Novo na Noite) é joia moderna que faz brilhar bela veia melódica em fina sintonia com uma letra zen. Obra-prima do disco, Noturna soa como canção contemporânea que parece ter vindo de algum lugar do passado. 

Das músicas antigas, Ainda Lembro é a que resulta mais interessante com balanço pop black retrô que remete ao som ouvido nas FMs na década de 1970. Já o groove que pauta Eu Sei (Na Mira) é mais seco. Álbum referencial na vida de Silva, que o ganhou de presente aos 12 anos, Memórias, Crônicas e Declarações de Amor tem revisitadas as canções Não é Fácil, Não vá Embora e Tema de amor.

Cantor eficiente, Silva jamais desconstrói o cancioneiro de Marisa. Quedam intactas as melodias e letras que já foram gravadas com maior brilho pela autora. O que Silva faz, ao cantar o repertório da artista, é ambientá-lo no universo sintético que pauta a obra que ele vem pavimentando ao longo de sua breve carreira. É nesse clima que figuram faixas como Infinito Particular.

Pecado é lhe Deixar de Molho é revestido de maior delicadeza, Beija Eu sintetiza a arquitetura pop da canção nos beats de Silva. A única abordagem que causa leve estranheza é a de O Bonde do Dom, um sambinha que soa modernoso ao ser jogado no trilho eletrônico.

Fechando o álbum, Na Estrada surgesuingada e sinaliza que Silva seguiu basicamente o mesmo caminho ao cantar a obra pop de Marisa Monte. Só que Marisa é, além de cantora referencial, compositora geralmente inspirada. A obra autoral da artista faz com que o álbum Silva Canta Marisa tenha o que sempre faltou aos discos autorais de Silva: um repertório homogêneo, sem altos e baixos. 

 

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