O ‘vrom vrom’ que conquista gerações

Neste sábado (20) é comemorado o Dia Nacional do Fusca, e os apaixonados goianos contam um pouco sobre sua relação com o automóvel

Postado em: 21-01-2017 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Neste sábado (20) é comemorado o Dia Nacional do Fusca, e os apaixonados goianos contam um pouco sobre sua relação com o automóvel

ELISAMA XIMENES

Volante cálice, interior de couro claro gomão, interior jacarandá. Se você não é um apaixonado por carros, provavelmente está com dificuldade para entender o que são os itens citados. Eles fazem parte do sonho de Caroline Álvares. Há pouco, ela conseguiu adquiri-los para equipar o seu Fusca. No dia 20 de janeiro, no Brasil, é celebrado o Dia Nacional do Fusca, e o que não faltam são apaixonados pelo modelo que, cada dia mais, tem se tornado relíquia e objeto de colecionadores. O formato arredondado e o diferenciado motor na traseira do carro conquistam homens e mulheres de todas as idades.

Na casa de Júnior, ou Carlos Alberto Abreu Júnior, é tradição de família. Dona Guinamar, sua avó, carregava o neto para aonde ia em seu Fusquinha. Não trocava o veículo por nenhum outro. Júnior herdou a paixão da avó e, em 1998, adquiriu seu primeiro Fusca, ao qual se dedicou por muito tempo. Restaurou e se empenhou em reformas no automóvel. Um dia, vendeu o primeiro ‘filho’ e seguiu sua vida. Fez faculdade de Geografia e trabalhou anos com contabilidade, já que seus pais atuavam na área. Mas não teve jeito: sua paixão era outra, e largou tudo para se dedicar à restauração de carros. 

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Como a tudo na vida, Júnior dedicou-se ao ramo. Estudou mecânica com profissionais experientes, alguns com história de mais de 40 anos mexendo com automóveis. “Eu tive sorte de conhecer essas pessoas, porque elas me lapidaram e, por isso, eu me tornei o profissional que sou hoje”, relata. Hoje, Júnior tem 12 Fuscas, todos adquiridos naturalmente, conforme ele conta. Quando perguntam para ele quando a coleção começou, ele nem sabe dizer. Talvez com o primeiro Fusca adquirido. Mas ainda assim houve uma ruptura. Depois de um tempo da venda do primeiro, Júnior o encontrou novamente e comprou de volta. Fez algumas novas reformas para que voltasse ao que era antes, e ele, hoje, é parte da sua dúzia colecionável.

Apesar do processo natural, ele é exigente na hora de fazer a curadoria para o que vai para sua coleção. “Aqueles que, por algum motivo, foram produzidos apenas durante um ano específico, ou que não costuma se encontrar com muita facilidade, são os mais desejados”, conta. Preza pelos modelos de série e, quanto mais antigo, melhor. Inclusive um dos maiores sonhos que realizou foi aquisição de um modelo Split de 1953. Split, do inglês, significa “divisão” ou “rachadura”. O nome é apropriado, porque os Fuscas desse tipo têm uma divisão no vidro traseiro que o transforma em duas janelinhas. O de Júnior é, inclusive, um modelo alemão – é sua preciosidade.

Está, agora, trabalhando em sua restauração, e o seu próximo grande sonho a ser realizado é ver o Fusca totalmente reformado. “Todos se entusiasmam junto, e estamos muito ansiosos para ver o carro rodando de novo e participando de competições e exposições”, relata. O desafio de agora é fazer o Fusca de 64 anos voltar à ativa. O privilégio que sente em ter um modelo como esse é tamanho, mas reforça que, apesar dos critérios, parece que os modelos que tem hoje o escolheram, e não o contrário. 

A paixão de Júnior já chegou, inclusive, ao seu filho Pedro. Ambos fazem parte de grupos de colecionadores a apaixonados por Fuscas de Goiânia. Apesar da vida corrida, Pedro segue os passos do pai na dedicação à relíquia automobilística. O sonho da família, agora, é construir um ateliê para a coleção em um espaço que deve ganhar o nome da bisavó de Pedro, que inseriu o Fusca na família e morreu no ano passado, Guinamar Aguiar de Abreu. A família também é inspiração para Caroline.

Aos 22 anos, ela conta que a paixão por Fuscas começou quando ainda era criança. “Sempre achei um charme e adorava a variedade de cores!”, conta. Em 2014, quando completaria 20, Caroline conseguiu comprar seu primeiro Fusca. Para isso, ela vendeu uma moto e completou com mais um dinheiro que havia poupado durante um tempo. Depois dele, já teve dois, e hoje tem apenas um.

Os cuidados com o ‘filho único’ são grandes – e são prioridade. “Sou muito ciumenta, eu mesma cuido da limpeza do carro”, relata. Para limpar, ela aspira o interior e lava com produtos a seco. A pintura é o que mais conserva no carro. Além dos itens já mencionados, hoje seu carro tem um rádio de época, e o padrão é praticamente todo original. Mas ainda sonha em instalar um ragtop, que é um tipo de teto solar original da Porsche. Aliás, essa preferência pelas coisas originais e, ao mesmo tempo, diferenciadas vem desde a infância, quando gostava mais dos Fuscas com cores raras. 

Apesar de gostar do diferente, detesta adaptações. “Creio que tira a essência da história do carro que rompeu décadas, porém respeito, mas não faria adaptação que foge da originalidade do veículo”, opina. Para ela, o maior diferencial do Fusca é o fato de ele ser compacto, além da acústica diferenciada proporcionada por seu formato oval com teto relativamente alto. O seu atual é na cor azul caiçara, mas suas cores favoritas para o Fusca são o ocre marajó e o azul ‘calcinha’. 

Mulher entende de carro sim! 

Hoje, ela faz parte de alguns grupos de fãs do Volkswagen sedan em Goiânia. Mas conta que não é fácil ser mulher nesse meio. Mesmo entre os companheiros de paixão. “Tem aquelas brincadeirinhas de mal gosto”, afirma. Segundo ela, muita gente acha que, por ser mulher, ela não entende de carro, remontando a um estigma machista, que tem sido desmontado há anos. Aqui na Capital goiana, inclusive, ela só conhece mais uma mulher desse meio. Uma minoria justificada, talvez, por um impedimento machista que muitas mulheres sofrem para serem consideradas ‘entendedoras’. Por isso, a presença das duas é uma forma de resistência a esse estigma.

A outra mulher é Ronny Sim, que conta que é muito difícil, mesmo, ser mulher nesse meio. Além dela e Caroline, há reuniões das mulheres dos fusqueiros, donas de Fusca mesmo só as duas. “Eles te recriminam, mas dão uma ignorada, e a gente tem que ser firme para manter, ali, essa posição”, relata. O respeito vem mesmo quando os homens percebem que a mulher gosta muito. A paixão dela vem por meio do pai, que trabalhou por 35 anos na Volkswagen; ele até tem uma medalha pela fabricação de Fuscas. 

Quando ele se aposentou e “ficou sem graça com a vida”, Ronny comprou um fusca para que ele participasse do clube do Fusca. “Ele ficou muito feliz, e eu também, fiquei tão feliz que fui lá e comprei um para mim também”, relata. Ela chama seu Fusca de Rubi, e é tratada no gênero feminino: “A minha Fuca Rubi”. A Rubi é de 1968, tem algumas modificações, mas a base dela é original. Ronny, Caroline, Júnior e Pedro fazem parte do grupo Pequi Volks, que, inclusive, promove um evento neste sábado (21), à tarde, na Praça Cívica. 

Breve histórico 

O Fusca é, basicamente, um projeto feito para durar. Hitler havia pedido para Ferdinand Porsche um carro que tivesse esse intuito. O velho Beetle ganhou o nome Volkswagen, que em alemão significa “Carro do Povo”. Depois de um tempo, passou a ser chamado Volkswagen Sedan e, no Brasil, passou a ser chamado, oficialmente, de Fusca.

Seu projeto foi criado na garagem de Ferdinand Porsche, em Stuttgard, Alemanha, no início da década de 1930. Desde então, ele foi ganhando adaptações que melhoravam seu rendimento. No início, por exemplo, ele era equipado com um motor dois cilindros, refrigerado a ar. Depois, criaram o motor quatro cilindros, opostos dois a dois, chamado de Boxter, também refrigerado a ar, com suspensão independente dianteira, que funcionavam através de barras de torção. Até então, os carros eram feitos com motores refrigerados a água. 

Ele foi lançad, oficialmente por Porsche, em 1935, e podia ser comprado pelo preço de 990 marcos, que hoje corresponderia a, aproximadamente, 1.730 reais. Em seu lançamento, ele já era equipado com motor refrigerado a ar, sistema elétrico de seis volts, câmbio seco de quatro marchas – quando só se fabricavam carros com caixa de câmbio inferiores a três marchas. Em 1939, com a Segunda Guerra Mundial, tornou-se veículo militar e ganhou derivados. Desde então, as modificações foram muitas, e seria difícil enumerá-las aqui com rigor. Em julho de 1996, mais de 60 anos após seu lançamento, foi anunciada a parada oficial de sua fabricação. Depois disso, houve o lançamento de uma série especial e, ainda, a criação do new Beetle  –  um Fusca moderno que não emplacou tanto quanto o original. 

CRÔNICA – ‘O motoboy’ 

Um Fusca bege estava no meio do caminho do motoboy Hudson Arruda todos os dias. O seu dono, um senhor de idade simpático, retirava o Fusca da garagem, diariamente, e o estacionava rente à calçada. Feita a baliza, era possível ver o anúncio de “Vende-se” na traseira. O ritual era sagrado e observado com inquietude pelo motoboy.

A casa do senhor ficava em uma das ruas pela qual Hudson passava para ir ao serviço. Em sua moto, sonhava com o dia em que poderia comprar fusquinha. Chegava ao serviço, saía para fazer entregas e o automóvel na cabeça. No dia seguinte, a cena se repetia: o senhor retirava o carro da garagem, e o deixava na calçada à venda.

O amor platônico pelo carro só aumentava e iria completar um mês. Ele ainda não havia tido a oportunidade de parar para, pelo menos, conhecer o fusquinha desejado, porque, caso o fizesse, chegaria atrasado ao serviço. Mas, vendo que a paixão se prolongava e a angústia de ver que um dia o carro não estaria mais ali, porque teria sido comprado por outra pessoa, aumentava, Hudson resolveu tomar coragem. 

Certo dia, venceu o sono, saiu mais cedo de casa a fim de conversar com o senhor que, há tanto, queria vender o Fusca bege. O homem de cabeça branca lhe explicou por quanto venderia e suas condições. Hudson coçou a cabeça e, em um impulso, ofereceu sua moto e mais um tanto em dinheiro para comprar o carro. O vendedor considerou a ideia e pediu que passasse lá mais tarde para negociarem.

Então Hudson voltou ao trabalho com a angústia que agora o fazia ter de escolher entre a moto e sua paixão platônica. Acontece que a moto não era só o veículo que tinha para ir ao serviço: era também seu instrumento de trabalho. Foi para casa com a pulga atrás da orelha e pensando em como faria. Não comentou nada com ninguém. Passou a madrugada com aquilo na cabeça.

Era sexta-feira, havia dormido mal de tanta ansiedade e preocupação, e saiu para o trabalho como de praxe. Passou pela rua, e lá estava o senhor, de novo, retirando o carro da garagem e o colocando na calçada para atrair um comprador. Então não se aguentou. Parou e, sem ser impedido por ninguém ou mesmo por sua racionalidade, comprou o Fusca. Conforme o combinado com o antigo dono, lhe entregou a moto como forma de pagamento e um pouco mais de dinheiro.

Não havia como voltar atrás. Hudson era, oficialmente, um Fusca maníaco. Afinal não haveria adjetivo mais apropriado para alguém que deixa o emprego por um Fusca. Não havia saída. Chegou ao serviço, conversou com o patrão sobre a decisão. Ele riu, mas fazer o quê? O negócio estava feito, e ele precisava de alguém que tivesse uma moto. Foi para casa com a nova aquisição que conquistou a mãe, mas desagradou ao pai.

A vizinhança mal podia acreditar naquela loucura. Mas ele, orgulhoso, passou o dia mostrando sua conquista para eles. Os apertos vieram depois. Chegou a ficar com ele 64 dias, parado, sem dinheiro para consertar um problema que havia surgido. Mas, em nenhum momento, se arrependeu de ter trocado um salário garantido todo mês pelo Fusca bege. Emprego ele consegue depois; um Fusca como aquela era quase que uma única oportunidade.  

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