Cerrado: cores sobre tela

Exposição traz 30 obras que abordam preservação e valorização do bioma goiano

Postado em: 16-01-2018 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Exposição traz 30 obras que abordam preservação e valorização do bioma goiano

GUSTAVO MOTTA*

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Flores, casinhas e campos – esses são alguns dos elementos presentes na obra da artista plástica Lourdes de Deus, que coloca em exibição ao público a exposição As Cores do Cerrado. A mostra exibe 30 telas, assinadas pela pintora, que abordam a importância de se preservar o bioma e o aspecto natural das paisagens rurais que acompanham o sertão goiano. “A exposição traz uma reflexão da beleza do campo, das colheitas, festas típicas e tradições do cerrado”, conta o curador Edemm Shalon. A exposição fica aberta ao público no Shopping Cerrado até 15 de fevereiro.

As pinturas abordam cenas cotidianas do espaço rural. Colheitas, brincadeiras de rua e o dia a dia da vida no campo são coloridas pela pintora em conformidade com a estética naïf – típica de artistas autodidatas. O desejo de pintar é algo tão antigo quanto a humanidade, e é dessa necessidade de expressão que nasceu uma arte “livre de convenções”, que atende às demandas de quem as cria. A arte naïf é caracterizada especialmente como uma forma pessoal de se expressar as emoções.

Exposição

Lourdes de Deus conta que a iniciativa para realizar a exposição surgiu após uma proposta feita à direção do Shopping Cerrado. “Meus trabalhos têm um grande interesse em retratar a paisagem rural, e os organizadores do espaço aceitaram a nossa proposta”, ressalta. A artista plástica conta que shoppings não têm uma tradição em promover exposições e, por isso, surgiu a ideia de expor peças nesse tipo de ambiente: “O público desses locais é muito amplo, e desconsidera diferenças sociais e profissionais”.

Lourdes acredita que se a exposição fosse realizada em uma galeria de artes, o público seria mais limitado: “Muita gente têm até medo de frequentar esses espaços”, lamenta. Edemm Shalon afirma que realizou uma viagem, no começo do ano, junto à pintora: “Fomos até o Mato Grosso, e nos encantamos com muitas paisagens”. O curador afirma que ao longo de conversas surgiu a ideia de se realizar uma exposição que conscientizasse as pessoas sobre a importância de preservação do cerrado e da cultura rural.

“O cerrado nos oferece tantas riquezas e belezas,  por isso eu acredito que seja importante manifestar a necessidade de se preservar o bioma”, reforça a pintora. Lourdes conta que as origens rurais a levaram a representar o cerrado. “Eu nasci no campo – quando criança, eu via o meu pai plantando milho, e muitas vezes realizamos juntos a colheita”, relembra. A artista acredita que existe uma conexão de memória com as pinturas: “Eu optei por representar aquilo que vejo – tanto que quando passo por uma campinho onde meninos jogam bola, aquela imagem me inspira a pintar.”

Brincadeiras, festas e danças são inspiração para o trabalho da artista. Uma de suas peças se chama Folia de Reis, e mostra um campo florido de rosas acompanhado de ipês amarelos e vermelhos. Na paisagem é possível acompanhar uma casinha ao fundo e uma pequena igreja, de onde sai um grupo de fiéis. Ao centro, bandeirolas e foliões representam a tradição local. “Essa peça valoriza o nosso folclore e nos leva à reflexão sobre a importância das nossas festas populares”, conclui.

Memória

Fauna e flora locais além do regionalismo interiorano – muitos são os aspectos que embelezam as pinturas, mas Edemm Shalon acredita que a arte vai além da decoração: “Se engana quem pensa que tudo se resume a decorar um ambiente, porque essas imagens expressam algo característico da nossa cultura”. O curador acredita que os visitantes podem se identificar com as imagens de brincadeiras, colheitas e música: “É comum as pessoas mais velhas rememorarem o passado mais rural e ligado aos ambientes do cerrado”.

“É muito comum, ao conversar com uma pessoa mais antiga, a identificação de memórias da infância e juventude sobre um local que se perdeu com o tempo, seja pelo desmatamento, seja pelo avanço imobiliário”, conta. “As pinturas têm como objetivo a conscientização sobre a necessidade de se preservar as imagens que estão nas telas – para que no futuro elas não fiquem apenas nos quadros, mas que as próximas gerações tenham acesso à beleza e às riquezas do cerrado”.

“As imagens da cultura rural têm desaparecido”, lamenta. O curador cita como exemplo a Capital, onde ipês (árvores típicas do cerrado) são encontrados em alguns pontos, dividindo espaço com empreendimentos imobiliários que são erguidos acima de nascentes e de outras riquezas naturais. “O centro histórico de Pirenópolis tem sobrevivido, mas não sem ter cada vez mais a necessidade de lutar com empreendimentos modernos pelo espaço”, pontua. O curador acredita que a cidade e a indústria reduziram o sertão a uma fonte de lucro.

“Um exemplo gigante de como a indústria assimilou a tradição caipira e a transformou em produto está na música dita sertaneja”, ressalta. Edemm Shalon afirma que as músicas de viola costumavam cantar sobre a natureza, a tradição religiosa e a vida no campo. “Hoje a música aborda outras temáticas que estão muito distantes do cotidiano rural – cerrado está se tornando fonte de lucro quando deveria ser fonte de qualidade de vida”, lamenta.

Preservação

“Quem passar pela exposição vai ter uma ideia de como as imagens nas obras podem servir para conscientizar sobre como é importante respeitar algo tão bonito como a natureza do cerrado”, afirma o curador. O processo de desmatamento do cerrado se consolidou na segunda metade do século 20 devido aos avanços da agropecuária sobre a região central do país. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apenas em 2015 foi desmatada uma área equivalente a seis vezes o tamanho da cidade de São Paulo (aproximadamente 9.000 Km²). Além disso, a devastação do bioma superou em 52% a destruição na Amazônia.

O avanço das queimadas é visto como a principal causa de devastação. Além disso, a não inclusão do bioma nas áreas de preservação promulgadas na Constituição de 1988 mantém a fauna e flora locais desprotegidas – apenas 3% da área do cerrado é formada por reservas e unidades de conservação. “A gente entende que é necessário deixar algum recado às pessoas”, conta Lourdes. Algumas das pinturas representam as queimadas, e a artista destaca a importância das cores em seus trabalhos: “Eu uso muito as cores primárias, como o vermelho para representar o fogo, e também o amarelo para o sol e o girassol, e o azul que representa o céu da paisagem rural”.

“É importante dizer que mesmo uma bituca de cigarro jogado à estrada pode provocar queimadas”, destaca Edemm Shalon. O curador aponta que é importante preservar a vegetação para que ela não seja apenas uma memória pintada sobre tela, mas também chama a atenção para a preservação dos hábitos e atividades regionais. Lourdes afirma que a representação de trabalhadores na lavoura é comum em seu trabalho. “Uma das minhas pinturas se chama Camponeses na Roça e mostra o trabalho no campo, que infelizmente está sob ameaça do trabalho de máquinas do campo – o que descaracteriza muito da paisagem rural”, lamenta.

‘Naïf’

Considerada a arte da criatividade autêntica e da espontaneidade, o naïf é instintivo porque a sua realização não exige orientação acadêmica. A palavra ‘naïf’ é de origem francesa e significa ‘ingênua’ – por isso o não enquadramento com moldes acadêmicos. O artista do gênero é individualista em suas manifestações mais subjetivas. “As pessoas, às vezes, descriminam o meu trabalho por acharem que se trata de algo infantil”, lamenta Lourdes.

“A minha arte é ingênua justamente nesse sentido da visão infantil, inocente, sem academicismos ou submissões às convenções da arte”, afirma. A pintora conta que preferiu seguir a vida como autodidata, sem contato com escolas de artes: “Eu entendo que a escola ensina técnicas, mas também ensina como fazer arte – e isso limita a criatividade”. A artista avalia que apesar de não prestar atenção a técnicas como a perspectiva ou sombreamento, sua obra é autêntica.

O artista mais conhecido da arte naïf foi o francês Henri Rousseau, especialista no uso de cores. Com uma educação pouco formal, o pintor causou polêmica e foi repreendido pela exposição de seu primeiro trabalho. Um dia de Carnaval (1886) foi criticado por ignorar princípios básicos de geometria e perspectiva. A obra mostra paisagens selvagens mescladas com imagens que remetem a sentimentos e sonhos de seu criador. Apesar da rejeição, Rousseau passou a ser reconhecido no século 20, após artistas como Salvador Dalí e Pablo Picasso se declararem admiradores do seu trabalho.

O estilo naïf se denota por uma aparente simplicidade nas peças, e costuma exprimir sentimentos e sensações primárias – tais como a alegria e espontaneidade. “Eu me inspiro em coisas bonitas e alegres que vejo – desde um flamboyant até o sol nascente”, conta Lourdes. Críticos e estudiosos da arte costumam se referir ao estilo como pertencente àqueles que pintam com a ‘alma’, enquanto que a arte acadêmica pertenceria aos artistas que criam imagens com o ‘cérebro’.

Artista

“Eu priorizo a liberdade de jogar as tintas na tela e mostrar todos os meus sentimentos”, reforça. Lourdes conta que acompanhou as trajetórias de muitos artistas, que pintam sobre várias temáticas, mas optou por representar exclusivamente o cerrado: “Eu gosto mesmo é dessa vegetação, da vida simples no campo, e das cores vibrantes que representam a nossa natureza – o amarelo, o vermelho, azul, entre outros”.

Lourdes de Deus nasceu em Custódia (PE) em 1959, mas se mudou para Osasco quando tinha apenas dois anos. Em 1976, se casou com o pintor Waldomiro de Deus. Convivendo com o marido, Lourdes criou gosto pela pintura.“Eu me lembro de quando pintei a minha primeira tela, e ele disse que eu poderia continuar porque não estaria desperdiçando material”, relembra entre risadas. Desde 1992, quando começou a pintar, a artista tem se aperfeiçoado nas artes.

“Ao longo de tantos anos, como esposa, mãe e avó, eu encontrei na pintura uma atividade de diversão, mas que também garante o meu sustento financeiro (as obras serão vendidas na exposição)”. Além da exposição As Cores do Cerrado, Lourdes já teve passagens marcantes por espaços artísticos, como participações na Bienal Naïf de Piracicaba (SP), representação brasileira em exposição na Eslovênia, e exposição no Museu Internacional de Arte Naïf de Magog (MIANM), em Quebec (Canadá), que são alguns dos momentos mais marcantes na carreira da artista plástica.

SERVIÇO

Exposição ‘As Cores do Cerrado’

Quando: até 15 de fevereiro

Onde: Shopping Cerrado (Avenida Anhanguera, nº 10.790 –Setor Aeroviário, Goiânia – GO)

Horário: segunda a sábado das 10 às 22h

Entrada gratuita 

*Integrante do programa de estágio do jornal O HOJE sob orientação da editora Flávia Popov 

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