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sábado, 23 de novembro de 2024
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História

A jornada espiritual de Madonna

Há 20 anos, a rainha do pop lançava ‘Ray of Light’. Vanguardista, álbum mais premiado é marco na indústria fonográfica

Postado em 6 de março de 2018 por Sheyla Sousa
A jornada espiritual de Madonna
Há 20 anos

Guilherme Araujo*

Na 1ª semana de março de 1998, era comum encontrar, ao passar pela Livraria Saraiva do Morumbi Shopping uma das lojas de discos mais conhecidas de São Paulo, filas quilométricas. Naqueles dias, simultaneamente, efeito semelhante acontecia em metrópoles como Londres, Paris e Ciudad de México. O frenesi tinha propósito – quatro anos de reclusão haviam separado Madonna da música pop e um novo trabalho acabara de sair do forno.

Houve quem vagasse por toda a cidade atrás de uma cópia do elogiado Ray of Light (Warner Bros Inc.), que se esgotavam na mesma velocidade em que eram postos nas prateleiras, sem deixar rastros. Os tempos eram outros. Só se falava no lançamento, feito em clima de absoluta curiosidade. O disco se converteria, tão frenético quanto o videoclipe da faixa título, um pop rock chiclete baseado na psicodelia dos anos 1970 e por influências techno, em um sucesso mundial.

Filmado em Los Angeles em planos acelerados, o material foi revolucionário nas produções da época. Uma tendência entre os outros quatro vídeos que viriam a seguir, sendo vencedor do Grammy nas categorias de Melhor Vídeo e Melhor Single Dance.

No centro de uma verdadeira corrida por atenção, o reforçou sua imagem de ícone e direcionou seu trabalho a aspirar atmosferas opostas ao clima que inebriava tanto a fãs, quanto a imprensa. Provavelmente usando um já ultrapassado aparelho de som, ideia um tanto distante da realidade atual marcada pela presença de serviços de streaming, a sensação que se tinha cenário ao chegar em casa em meio a esse cenário e colocar o CD para tocar, era a de imersão total em um universo paralelo.

Cética quanto a questões elementares em relação à vida, a cantora apresentou 13 novas faixas – número escolhido estrategicamente por representar a idade de realização da cerimônia judaica do Bar Mitzvah e solidificação completa da alma no corpo, de acordo com os estudos da Cabala, sua mais recente fixação.

Amparada pelas aulas de canto que recebeu dois anos antes para protagonizar o musical Evita, o resultado foi a reunião de canções amplamente distintas de seus trabalhos anteriores. Tudo refletia um estado de graça, provocado pelo nascimento da primeira filha, Lourdes Maria. “Acho que o nascimento da minha filha foi um renascimento para mim, porque me fez enxergar a vida uma forma completamente diferente. E talvez também apreciá-la”, disse à época.

Introspectivo, Ray of Light é delineado por composições maduras e cantos devaneadores. Propõe gradativamente profundas reflexões sobre o mundo, inclusive se atentando para a ausência de percepção sobre a pequenez humana, como acontece na poderosa Drowned World/Substitute for Love. “É definitivamente a canção que encarna o meu pensamento. É muito sedutora a falsa impressão de que se você é famoso, de alguma forma você será realmente amada ou feliz. Ninguém te adverte de que a fama é o que justamente te mostra o contrário”, explicou.

Munida de vocais harmoniosos, permeados por delicadas interjeições, promove uma espécie de caminho para a luz como acontece em Swim, faixa de influências predominantemente rock. Um tanto autobiográfica, questiona sobre as mazelas do mundo e escancara seu descontentamento: “Não consigo carregar esses pecados nas costas / Não quero mais carregá-los / vou retirar este trem dos trilhos / vou nadar até o fundo do oceano”.

Em meio a esse transborde de novas resoluções – e mergulhada na espiritualidade –, surgiram baladas como a gloriosa The Power of Good-Bye. Num efeito sensacional, a canção trata sobre o curso natural das coisas, a evocar a necessidade de sabedoria para lidar com o esfacelamento das relações. 

Representante de uma das principais veias da obra, entrega em sua base a receita mágica usada pela artista ao combinar elementos eletrônicos a instrumentos de música clássica, como o violino e o baixo. 

Ainda com a maternidade exercendo seu papel de embrião, tece, em uma espécie de cantiga de ninar, um cordão invisível capaz de materializar sua relação com a filha em Little Star.

Sob uma perspectiva que também se revela anacrônica, relembra a presença de memórias da própria mãe, morta quando tinha apenas 5 anos de idade. Regride e embala a quase totalmente acapella Mer Girl, uma faixa de letra complexa e profunda que anuncia o fim do disco, mas não da jornada. Canta, despida de sentimentos: “O chão fez caminho entre os meus pés / corri e corri / hoje continuo correndo”.

Veronica Eletronica

Sob o alterego de Veronica Eletronica, Madonna assumiu figuras que, se comparadas às linhas de trabalho utilizadas nos anos 1980 e no início da década, então pudessem se assustar. Camaleônica teve seus visuais comentados à exaustão em todas as praças anteriores em que suas numerosas excursões passaram.

As madeixas loiras e platinadas, uma de suas marcas registradas, deram espaço a fios negros (seu tom natural) em uma figura que tomava forma acompanhada por peças de couro e cores sóbrias, ora como gueixa, ora como deidade hinduísta. Com apresentações de promoção que se configuravam como um show à parte, apareceu por incontáveis vezes com os seios livres, quase sempre marcados por blusas de seda. Luzia, sem a necessidade de mais explicações, um estado de desapego ao artificial.

Nessas, promoveu hipnoses coletivas, como quando se apresentou no MTV VMA 98’, quando apareceu acompanhada de um grupo de dançarinas clássicas indianas e portando maquiagem típica. Ao som de Shanti/Ashtangi, mantra musicado e cantado totalmente em sânscrito, deu vida a um dos momentos mais exóticos da premiação que a havia lançado, anos antes, para o estrelato. 

Levou para casa seis prêmios – aos quais se somaram muitos outros – embora não tenha agradado a todos. Mal acabada a apresentação, transmitida ao vivo, a comunidade hindu foi à imprensa e condenou a cantora por blasfêmia. A justificativa foi a de que a maquiagem usada na ocasião não era apropriada para festas. Um “desrespeito às tradições”.

Convidada pela primeira vez em 15 anos de carreira a se apresentar no Grammy Awards, a inspiração caminhou ainda mais longe com os olhos no Oriente. Inspirada também na cultura japonesa abriu a premiação ao som da dançante Nothing Really Matters, trajando um suntuoso quimono vermelho, assinado por Jean Paul Gaultier. 

Índia, guitarras e experimentação

Foi todo molhado, em um dia de chuva e com fitas em sacolas plásticas, que o britânico William Orbit chegou à casa da cantora, em junho de 1997. Escolhido a dedo, não acreditou de primeira que havia sido convocado para uma produção tão importante. “Quando o vi, ele parecia muito frágil, muito simples, como um garotinho. Gostei dele imediatamente”, disse Madonna.

A ideia consistiu em descobrir novos e diferentes colaboradores a fim de que fossem captadas as diferentes auras que as canções elegidas parecem emanar. Ao lado de Orbit, que não demorou a ganhar reconhecimento na cena de então, estavam os veteranos Patrick Leonard e Marios De Vries.

Toda essa experimentação combinada fez com que a estudante de Publicidade e Propaganda Claudia Avellar, que à época do lançamento tinha somente 4 anos, se apaixonasse instantaneamente por Ray of Light. “Ainda me lembro da primeira vez que escutei o disco. Comecei a pesquisar e toda aquela carga de referências e inspirações me fascinou. Mas o que mais me chamou a atenção foi o modo como ela conseguiu trabalhar a religião e as culturas orientais”, lembra. 

Perspicaz e inspirador, o álbum foi responsável por quebrar um padrão comercial ao promover um estado de ânimos mais amistoso em que novos públicos passaram a se interessar pela música eletrônica, que até então não passava de marginalizada. Neste senso produtivo, compôs-se a sensual Candy Perfume Girl, uma faixa de refrão chiclete, cantado em sintonia com o alucinógeno do universo rock.

A evocar presságios e em seu deleite pelo elixir da fantasia lírica, o carro-chefe do disco, a balada Frozen, se converteu em uma das faixas mais belas de todo o seu catálogo. Acompanhada por uma orquestra e embebendo-se de sons sombrios, inseridos como se degraus fossem escalados e o ponto final fosse a porta do Nirvana, Madonna consolidou seu surfe em um mar de experimentações. O que se veria dali em diante seria uma abundância de recursos, explícitos, por exemplo, ao brincar com as possibilidades e as culturas, como acontece em Skin, onde sopros marcados de gaita de fole aparecem ao fundo. 

Desafiando até mesmo a coesão da mixagem final, já em To Have and Not To Hold, o que surge é um deleite para com a mais genuína Bossa Nova, uma homenagem escancarada a sua paixão pela música de João e Astrud Gilberto. Diante desse amplo leque criativo, não seria nada admirável chegar à conclusão de que somente Madonna poderia fazer tudo isso ter algum sentido, convertendo Ray of Light em um material enviado pelos céus.

*Guilherme Araujo é integrante do programa de estágio do jornal O Hoje

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