Um marco nas artes cênicas

O canal Curta! revive a história do ‘Teatro Experimental do Negro’, revela seu pioneirismo em colocar atores negros nos palcos e aborda a importância que os grandes nomes do grupo têm ainda hoje

Postado em: 16-08-2023 às 07h00
Por: Lanna Oliveira
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No episódio ‘Teatro Experimental do Negro’, que estreia esta semana, a produção aborda um marco importante nessa trajetória | Foto: Reprodução

A história das artes cênicas no Brasil se confunde com a própria história do País. Uma viagem ao passado do teatro nacional apresenta como foi a construção cultural da nossa essência. Para exaltar essa caminhada árdua de atores que fizeram tudo acontecer, a série inédita ‘Companhias do Teatro Brasileiro’, exibida com exclusividade no Curta!, conta um pouco de como foi essa evolução. No episódio ‘Teatro Experimental do Negro’, que estreia esta semana, a produção aborda um marco importante nessa trajetória. 

O teatro brasileiro sempre teve um predomínio de atores brancos, com raras exceções na primeira metade do século passado. Entre essas figuras, destacam-se os irmãos Vasques (século XIX) e Benjamin e Vitória de Oliveira, que vieram do circo-teatro. Já Grande Otelo foi revelado pela Companhia Negra de Revistas, a primeira a colocar um negro em cena. Esses artistas, no entanto, eram de linhagem cômica e somente na década de 1940, a partir da criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), atores negros passaram a representar papéis dramáticos. 

Parte dessa história é contada no quarto episódio da série inédita ‘Companhias do Teatro Brasileiro’, exibida com exclusividade no Curta! ou no streaming CurtaOn!. Com direção de Roberto Bomtempo e produção da Camisa Listrada, a série relembra artistas como Ruth de Souza, Léa Garcia e Haroldo Costa em entrevistas inéditas falando como o TEN surgiu, seus objetivos e sua trajetória. Fotos e entrevistas históricas ilustram o episódio, que conta ainda com o pesquisador Daniel Marano e Elisa Larkin Nascimento, escritora e diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros.  

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Abdias Nascimento, ator, poeta, jornalista, economista e militante da causa negra, foi o criador da companhia ao lado de Aguinaldo Camargo, Theodorico dos Santos e José Hernel. O TEN foi uma resposta a uma prática comum na época conhecida como ‘black face’, na qual atores brancos tinham o rosto pintado de preto para interpretar personagens negros. Abdias ficou indignado ao assistir a uma produção teatral que utilizava essa prática e decidiu fundar um teatro negro que servisse para combater o racismo. 

O ‘Experimental’ viria para romper conceitos, permitir a experimentação artística e o questionamento das normas estabelecidas. Além, claro, de mostrar que os negros também podiam ser atores. Em um primeiro momento, o elenco do TEN seria composto por pessoas humildes. Por isso, segundo Elisa Larkin Nascimento, a primeira medida tomada foi a de ofertar aulas de alfabetização porque “sobretudo naquela época, mais do que hoje, não se fazia teatro sem texto. O texto era a estrutura do teatro, então tinha que saber ler”, ressalta ela.

O TEN estreou em 8 de maio de 1945 com a peça ‘O Imperador Jones’, de Eugene O’Neill, não por acaso, a mesma que Abdias tinha assistido anos antes, marcando a primeira vez que atores negros pisaram no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Entre os talentos estava Aguinaldo Camargo, que era delegado de polícia, e se mostrou uma das grandes revelações dramáticas da década. Daniel Marano explica que Abdias do Nascimento, desde o começo, quis que o Teatro Experimental do Negro fosse mais do que apenas um grupo teatral.

Ele revela que o intuito era envolver o elenco em toda produção teatral. Era importante que eles desenvolvessem atividades paralelas ao palco. Assim vieram os cursos de alfabetização, congressos, debates sobre a questão do negro, concurso de artes plásticas, de beleza e a publicação de um jornal, ‘Quilombo’. A companhia enfrentou inicialmente resistência ao ser batizada com esse nome, pois muitos acreditavam que associar o termo ‘negro’ ao teatro seria um caminho certo para o fracasso. 

No entanto, o episódio ‘Teatro Experimental do Negro’ narra que Abdias tinha uma visão clara: o TEN não era uma proposta exclusiva para negros, mas sim um espaço onde o negro teria protagonismo e liderança, onde suas perspectivas e concepções artísticas seriam valorizadas. A ideia nunca foi excluir brancos, mas sim proporcionar visibilidade aos artistas negros. Por ter um raciocínio à frente do tempo, ele já foi descrito como o mais completo intelectual e homem de cultura do mundo africano do século XX.

Léa Garcia, uma das atrizes que passou pelo TEN, e foi casada com Abdias, ressalta que ele valorizava profundamente a profissão teatral e exigia dos atores um comportamento exemplar. “Ele enfatizava a importância de respeitar horários, e além de ser pontual, tinha que dominar o texto, demonstrando ser um líder exigente em busca da excelência artística. A visão e os ensinamentos de Abdias Nascimento foram fundamentais para a formação e crescimento dos artistas”, relembra. 

Ao longo da década de 1960, o TEN se afastou dos palcos devido a questões financeiras e passou a focar mais nas atividades sociais e políticas lideradas por Abdias Nascimento, que seguiu carreira política, uma forma de ampliar conquistas. Em uma rara entrevista, Abdias explica a importância da companhia. “O Teatro Negro é uma afirmação da cultura negra, da capacidade do negro de se organizar, a capacidade de luta do negro e de cultura africana no Brasil, independentemente de qualquer influência branca”. 

Não obstante o curto tempo de duração do grupo, o Teatro Experimental do Negro, juntamente com o grupo Os Comediantes, é responsável por inaugurar o teatro moderno brasileiro. Priorizando seu projeto artístico sem levar em conta o gosto médio da plateia, acostumada com as fáceis comédias de costume, abrindo mão da profissionalização dos atores, encenando textos de expoentes da literatura e da nova dramaturgia brasileira, como Jorge Amado, Augusto Boal e Nelson Rodrigues, por exemplo, além de suas próprias peças.

O grupo, um lugar de experimentação, atraiu a atenção e a colaboração de outros inovadores como o diretor Zigmunt Turkov e o cenógrafo Tomás Santa Rosa. O TEN significou uma iniciativa pioneira, que mobilizou a produção de novos textos, propiciou o surgimento de novos atores [Ruth de Souza e Haroldo Costa, por exemplo], também grupos e semeou uma discussão que permaneceria em aberto: a questão da ausência do negro na dramaturgia e nos palcos de um País mestiço, de maioria negra. 

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