Leodegária de Jesus e o apagamento de mulheres negras na literatura

Resgatando a voz esquecida de uma poetisa negra e sua contribuição para a cultura goiana

Postado em: 13-01-2024 às 10h00
Por: Luana Avelar
Imagem Ilustrando a Notícia: Leodegária de Jesus e o apagamento de mulheres negras na literatura
A iniciativa das professoras Ebe Lima Siqueira, Edina Ázara e Goiandira Ortiz resgata décadas de silêncio literário em Goiás | Foto: Daniel Nascimento

Na literatura brasileira, as contribuições das mulheres negras frequentemente passam despercebidas, relegadas a uma persistente sombra de apagamento histórico. Em meio a esse esquecimento, emerge a figura de Leodegária de Jesus, uma poetisa negra que desafiou as barreiras do tempo e do preconceito para dar vida à sua voz.

No início do século XX, Leodegária Brazília de Jesus publicou ‘Corôa de Lyrios’, o primeiro livro de poesia de autoria feminina em Goiás. Nascida em 1889 em Caldas Novas, Goiás, a autora absorveu a influência do romantismo desde seus 15 anos, evidenciada nesta obra. Contudo, sua trajetória e influência foram muitas vezes eclipsadas por narrativas que negligenciaram a importância das mulheres negras na construção da literatura nacional.

Sua história é entrelaçada com a educação e o engajamento político de sua família. Seu avô, um alfaiate em Minas Gerais, e seus pais, Ana Isolina Furtado Lima e José Antônio de Jesus, que fundou a primeira escola de Caldas Novas, destacam-se como figuras que contribuíram para a sua formação. A busca pela educação foi uma constante em sua vida, refletindo o contexto do século XIX.

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A mudança para a Capital do Estado, impulsionada pela eleição do pai como deputado estadual, marcou uma nova fase na vida de Leodegária. Estudando no Colégio Sant’Ana, ela estabeleceu conexões importantes com outras mulheres atuantes na época, como Luzia de Oliveira, Rosita Godinho, Alice Santana e Cora Coralina. A participação no Clube Literário Goiano e a fundação do semanário ‘A Rosa’ demonstraram seu comprometimento com a promoção da escrita feminina e a defesa de causas relevantes.

A itinerância marcou boa parte de sua vida e da sua família, impulsionada pelas condições de saúde do pai. Viveram em diversas cidades, como Araguari e Uberlândia em Minas Gerais, no Amazonas, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Mesmo diante das adversidades, a escritora permaneceu fiel à sua profissão de professora, fundando o Colégio São José em Araguari.

O desejo de divulgar sua produção literária a levou a enfrentar desafios locais, como em 1924, quando tentou publicar poemas no jornal A Redação, sendo desencorajada pelas autoridades locais. O episódio revela o esforço de Leodegária em expressar suas ideias, mesmo que através de artifícios editoriais, como o ‘Diálogo de uma Rosa’ assinado por sua amiga Antonieta Vilela.

A poeta enfrentou a estética moderna em sua obra ‘Orchideas’, publicada em 1928, destacando-se como a segunda mulher a publicar poesias em Goiás, após Regina Lacerda em 1954. A lacuna na crítica literária em relação às suas contribuições, ressalta a necessidade de reexame da história literária goiana, especialmente no que diz respeito às mulheres negras.

Vandalismo nas esculturas de Leodegária e Cora Coralina

Em 7 de maio de 2023, atos de vandalismo atingiram as esculturas de Cora Coralina e Leodegária de Jesus no Mercado Municipal da Cidade de Goiás, não apenas resultando em danos físicos, mas também instigando reflexões sobre a valorização e visibilidade das artistas negras na sociedade. A preservação de outras esculturas, principalmente as de Cora Coralina, sugere a possibilidade de um direcionamento específico nos atos de vandalismo, apontando para potenciais preconceitos sociais.

Livraria Leodegária

Em agosto de 2018, a Cidade de Goiás começou a abrigar não apenas estantes repletas de livros, mas também o espírito intrépido da poeta. A Livraria Leodegária, fundada pelas professoras Ebe Lima Siqueira, Edina Ázara e Goiandira Ortiz, é um ponto de encontro para livreiros, escritores, leitores e todos que nutrem um amor pela cultura.

Desde a década de 1920, a cidade não testemunhava uma livraria, e a iniciativa das fundadoras é uma resposta a um deserto de letras que finalmente recebeu sua devida atenção. Ao adentrar a livraria, os visitantes são imersos em um ambiente que celebra a diversidade literária e também a força e coragem da escritora. 

A Honra de Doutora Honoris Causa para Leodegária em 2023

O reconhecimento póstumo da autora veio no final de 2023 em uma cerimônia marcada pelo sentimento de reparação histórica, a Universidade Federal de Goiás (UFG) concedeu, in memoriam, o título de Doutora Honoris Causa a Leodegária no dia em que ela completaria 134 anos de idade. A solenidade ocorreu no Colégio Sant’Ana.

A distinção como Doutora Honoris Causa representa um marco na história da UFG, sendo Leodegária a quarta mulher a receber tal título, sucedendo Cora Coralina (1982), Ana Maria Primavesi (2011) e Maria Sylvia Zanella di Pietro (2021).

Em um discurso que resgatou a importância histórica da poetisa para a cultura e educação em Goiás, a secretária de inclusão da UFG, Luciana Dias, enfatizou: “Se para uma mulher, produzir literatura, arte, cultura, história, ciência ou política, significa lidar com imperativos fundados no patriarcado, que a situam em uma posição de inferioridade com relação aos homens, imaginem a carga de preconceito, discriminação e violências que essa mulher tem que lidar se ela for uma mulher negra. As mulheres negras experimentam discriminações acumuladas quando vivem em sociedades de base machista e racista. Importante destacar que quando uma mulher negra se movimenta toda a sociedade se movimenta com ela”, afirmou a secretária, parafraseando a professora, filósofa e ativista Angela Davis.

Ao destacar os 48 anos em que Leodegária foi a única mulher a publicar livros de poesia em Goiás, Luciana Dias ressalta o papel da escritora em movimentar a cultura local. A secretária concluiu seu discurso afirmando: “Leodegária, presente!”

Memorial 

O título de Doutora Honoris Causa in memoriam marca o início de iniciativas da UFG para honrar a memória de Leodegária. Após a cerimônia, a reitora anunciou a assinatura de um protocolo de intenções entre a UFG e a prefeitura da Cidade de Goiás para a criação de um memorial dedicado à obra de Leodegária.

“A UFG, a partir de hoje, será a guardiã dessa história. Isso é de uma responsabilidade imensa. Trouxemos essa proposta para que possamos, UFG e prefeitura, cravarmos no coração da cidade, um memorial com o busto da Leodegária, para que essa memória fique sempre escrita para as pessoas que moram aqui, mas principalmente para quem virá e desconhece a Leodegária, para quem virá e poderá entender um pouco mais da luta e da história das mulheres resilientes que poderão atravessar séculos porque ousaram escrever, porque ousaram não se silenciar”, concluiu a reitora.

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