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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Opinião

China em ritmo de “prosperidade comum”

Regimes autocráticos unipartidários são a mais completa tradução do patrimonialismo, relata

Postado em 17 de junho de 2022 por Redação

Paulo Kramer

Regimes autocráticos unipartidários são a mais completa tradução do patrimonialismo, sob cuja égide os governantes traçam, apagam e retraçam ao seu bel-prazer os limites entre o público e o privado, arvorando-se em titulares últimos de todas as riquezas produzidas pela sociedade. Em obediência a essa lógica política, tais ditaduras nunca hesitam em reprimir os agentes econômicos privados, restringir seus direitos de propriedade e os mercados onde operam quando o enriquecimento de cidadãos particulares parece subtraí-los ao controle do Estado-partido. 

Por isso mesmo, como destacam Max Weber (1864-1920) e outros pensadores liberais, a propriedade privada dos meios de produção e a livre concorrência econômica são indispensáveis tanto para o progresso material e a inovação tecnológica quanto para a preservação dos direitos civis e das liberdades políticas em face do agigantamento da burocracia governamental.

E, como o bom desempenho da economia e do emprego configura a principal fonte de legitimidade dos regimes que recusam a rotatividade do poder entre partidos competitivos mediante eleições periódicas, livres e limpas, sempre que o crescimento do PIB desacelera, os ditadores se veem obrigados a recorrer à propaganda nacionalista, ao populismo e à repressão pura e simples a fim de sufocar o descontentamento social e suas consequências políticas desestabilizadoras.

Essas observações de caráter geral, destiladas a partir das amargas experiências históricas do século passado, ajudam a compreender o que está se passando na China de Xi-Jinping, que, desde sua chegada ao vértice do poder, uma década atrás, concentrou em suas mãos o poder partidário e governamental, punindo 1,5 milhão de quadros em sucessivas ondas de ataques anticorrupção. 

Em 2018, ele emplacou emenda constitucional eliminando o limite de dois mandatos de cinco anos para sua recondução a secretário-geral do Partido Comunista e presidente da república. E, em novembro último, resolução do pleno do Comitê Central do Partido Comunista Chinês colocou o “pensamento de Xi-Jinping” em posição de paridade com os legados ideológicos de Mao Tsé-tung e de Deng Xiaoping.

Ryan Hass, analista da Brookings Institution, inscreve no marco da nova campanha oficial de “retificação” batizada de “Prosperidade Comum” recentes decisões como: o bloqueio do acesso de gigantes tecnológicos privados à bolsa de valores de Nova York (exemplos: o Ant Group, da holding Alibaba, controlada pelo legendário magnata do comércio digital Jack Ma; e o aplicativo Didi, equivalente ao Uber) — sob o pretexto de violar a privacidade dos consumidores chineses!… —, as proibições do lucrativo e difundido ramo de cursos particulares de “reforço escolar” e da propriedade estrangeira de escolas privadas, a atitude ostentatória das primeiras gerações de bilionários e milionários chineses — consumidores de quase metade dos bens de luxo vendidos no mundo —, a censura à sexualidade ambígua de estrelas do show business e até mesmo a limitação do número de horas semanais que crianças e adolescentes podem brincar com seus videogames.

Enfim, é o fortalecimento do controle do Estado-partido sobre a economia e a sociedade, mas, nas palavras de Xi para o comitê de assuntos financeiros e econômicos do Partido, em agosto, a campanha se destina a promover o equilíbrio entre “crescimento e estabilidade”.

Vale assinalar que “prosperidade comum” é uma expressão que frequenta há muito tempo o léxico do comunismo chinês. Já na primeira etapa do regime maoísta, em dezembro de 1953, manchete do Diário do Povo, órgão partidário, exaltava a “prosperidade comum” como a grande finalidade da campanha contra os remanescentes do capitalismo, que a liderança chinesa então identificava como regime odioso fadado a beneficiar um pequeno punhado de ricos em detrimento da esmagadora maioria pobre. 

Desde o final dos anos 1970, com a morte de Mao e a consolidação de Deng, o termo passou a designar as políticas que estimulavam o enriquecimento inicial de alguns agricultores na certeza de que, com o tempo, o “bolo” assim ampliado viria a ser equanimemente dividido entre o conjunto da população. Sem dúvida, o crescimento econômico resultante dessa estratégia promoveu, em poucas décadas, a maciça erradicação da pobreza extrema e o surgimento de numerosa classe média; mesmo assim, cerca de 600 milhões de trabalhadores chineses ainda vivem com o equivalente a 154 dólares por mês, ou menos.

Agora, a novíssima versão da iniciativa de “prosperidade comum” procura conciliar as ênfases de seus avatares anteriores, prometendo redistribuir riqueza, reduzir desigualdades e nivelar as oportunidades de ascensão social. O regime sinaliza que este será o caminho mediante o qual o país preencherá as prioridades do ambicioso programa Made in China 2025, que visa torná-lo o mais competitivo do mundo em áreas como manufatura de última geração, tecnologias ambientalmente amistosas, chips (semicondutores) e veículos elétricos.

É natural, porém, que a ofensiva de Xi esteja provocando desconfiança entre os investidores ocidentais. Somente a retirada das ações de empresas de tecnologia dos pregões americanos deve eliminar mais de 1 trilhão de dólares do valor de mercado das mesmas! Isso no momento em que a desaceleração do PIB (4,9% no terceiro trimestre de 2021 contra 7,9% no segundo) agrava o problema do desemprego — especialmente entre os jovens de 16 a 24 anos (14,2%). Para aplacar esses temores, jornalistas e economistas ligados ao partido e ao governo procuram justificar a campanha como um necessário ajuste que vai garantir o crescimento a longo prazo, eliminando distorções momentâneas, sem o risco de uma estratégia de soma-zero que rouba dos ricos para auxiliar os pobres. 

Xi, em pessoa, discursando em evento sobre o comércio global de serviços, realizado no início de setembro, comprometeu-se a cooperar com os demais países na promoção da abertura e de soluções ganha/ganha.

Mas é claro que os donos do dinheiro no mundo prestam mais atenção à realidade dos números do que ao palavrório oficial, e o histórico dos últimos tempos de fato inspira preocupação. Depois da suspensão da estreia mundial do Ant Group no mercado de capitais e da abertura de investigações dos reguladores chineses sobre supostas práticas monopolistas do Alibaba — respectivamente em novembro e dezembro de 2020 —, este último foi multado em 2,8 bilhões de dólares por abuso de seu domínio de mercado. Em abril de 2021, restrições semelhantes foram impostas a outras 13 empresas, inclusive à Tencent (comércio eletrônico) e à Meituan (entrega de refeições em domicílio). 

Ainda no final de 2021, o mercado aguardava a punição que os reguladores da segurança cibernética aplicariam ao Didi. No último trimestre, a Tencent reportou faturamento “inferior ao esperado”. O Alibaba está prevendo corte de um terço em suas previsões de vendas para 2022. E a Meituan divulgou seu maior prejuízo em três anos, depois de uma multa recorde dos reguladores antitruste.

A escalada populista do regime de Pequim ocorre paralelamente a uma intensificação de declarações e gestos chauvinistas. No final de novembro, num tipo de ação que já virou rotina, esquadrilha da força aérea do Exército de Libertação Popular composta por caças e dois bombardeiros nucleares “H-6” penetrou no espaço aéreo de Taiwan em resposta à visita de solidariedade de um grupo de congressistas dos Estados Unidos a Taipé. 

Comunicado do ELP justificou essa incursão pela necessidade de “lidar com a presente situação no Estreito de Taiwan”, acrescentando que a ilha “é parte do território chinês” e que “defender a soberania nacional e a integridade territorial é nossa sagrada missão militar”.

Paulo Kramer é cientista político e pesquisador da Fundação da Liberdade Econômica

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