Profissionalização do futebol passa por escolha e capacitação das lideranças
Países como França e Espanha, a substituição do modelo associativo pelo clube-empresa serviu para combater o endividamento
Luis Giolo
Existe um ditado que diz que o futebol é uma caixinha de surpresas, referindo-se à imprevisibilidade dos resultados das partidas. Mas, dado o cenário atual do esporte mais popular do planeta, a distância entre vencedores e perdedores é muito menos randômica do que se pode eventualmente supor. Em grande medida, as vitórias ou derrotas dependem muito de como um clube é gerenciado.
Essa é uma máxima que, na verdade, vale para qualquer negócio. E hoje, mais do que nunca, o futebol é tratado como um empreendimento, e com o potencial de ser bastante lucrativo. Agremiações que não acompanham esse pensamento correm o risco de ficar para trás nas tabelas de classificação dos campeonatos — e até mesmo de desaparecer do mapa das disputas.
Assim, nos últimos tempos, esse esporte passou a ser alvo de crescente profissionalização, abandonando as searas amadorísticas em que foi praticado ao longo de décadas. Para termos uma medida desse movimento, basta analisarmos alguns dados do futebol europeu, o mais rico do mundo. No Velho Continente, 96% dos times das cinco principais ligas – alemã, espanhola, inglesa, francesa e italiana – adotaram um modelo de gestão empresarial, de acordo com um levantamento da Ernst & Young.
Em países como Itália, França e Espanha, a substituição do modelo associativo pelo clube-empresa foi determinada legalmente para combater o endividamento de muitos clubes. No Brasil, não a título de obrigatoriedade, mas de alternativa para o meio, uma lei instituiu, no ano passado, a figura da SAF, ou sociedade anônima do futebol. Tal medida foi vista por aqui não só como oportunidade de desenvolvimento para o setor, mas como uma verdadeira tábua de salvação para times seriamente ameaçados pela sua situação financeira.
Quando falamos em gerir um negócio, precisamos considerar que ele precisa dar bons resultados. Especialmente no futebol, eles devem extrapolar os conquistados dentro de campo, mesmo porque os números obtidos fora dele impactam diretamente os alcançados dentro das quatro linhas. É um círculo virtuoso.
Para entender melhor essa lógica, basta lembrar que os campeonatos mais fortes estão justamente na Europa porque os clubes europeus têm mais capacidade financeira de contratar os melhores jogadores do mundo, o que leva esses times a ganharem títulos e, com isso, atrair visibilidade, patrocinadores, torcedores e consequentemente ter mais dinheiro, mais contratações e mais troféus.
Nenhuma surpresa na roda dessa engrenagem, mas não podemos nos esquecer de que grandes aportes de capital, por si sós, não significam estruturas vitoriosas — assim como um amontoado de craques não necessariamente constitui um esquadrão de ponta. Para chegar ao topo, é preciso organização, motivação, propósito. Em suma, é necessário não só um bom projeto de gestão mas uma perfeita execução.
E ele demanda líderes preparados para conduzi-lo. E, no futebol como negócio, esse preparo envolve peculiaridades. Em geral, o dirigente de um time tem de abrir mão da sua vida pessoal em circunstâncias que um executivo de uma grande corporação não necessitaria. Basta considerar que as equipes, sobretudo no Brasil, jogam, no ápice da temporada, a cada três dias em diversos cantos do país ou do continente, inclusive aos finais de semana. Invariavelmente o gestor terá de participar de algumas dessas viagens, para não só ver a execução de sua estratégia bem como dar moral aos colaboradores.
O volume de responsabilidades também é grande. Mesmo os maiores clubes do Brasil não têm uma estrutura tão amplamente constituída quanto a de uma grande empresa, o que obriga o CEO da agremiação a acumular uma quantidade maior de atribuições em seu cotidiano. Muitas vezes não caberá a ele somente delegar uma tarefa, mas efetivamente realizá-la, colocando a mão na massa.
O negócio do futebol tem especificidades em muitos aspectos, a começar pela sua principal “matéria-prima”: o jogador. A gestão de um clube precisa compreender os meandros da formação de atletas de base, que, uma vez convertidos em promissores talentos, vão proporcionar vultosos aportes de caixa ao ser negociados. Tem de entender também os mecanismos de compra e venda de jogadores no mercado, visto que os valores envolvidos muitas vezes são astronômicos, e contratações equivocadas podem significar grandes perdas em campo e fora dele. O investimento em jogadores pode ser comparado aos projetos financeiros feitos pelas empresas, com taxas de retorno calculadas sobre o capital investido ao longo do tempo.
A realidade brasileira é ainda mais complexa para o gestor. Aqui, os índices de turnover dos técnicos que comandam as equipes costumam ser maiores que os da Europa, rotatividade essa impulsionada por fatores como a pressão por resultados exercida pelas torcidas e pela própria mídia especializada. Diante desse cenário de instabilidade na ocupação do cargo de treinador, os próprios candidatos a CEO dos clubes temem ser envolvidos na mesma roda viva de culpabilidade por mau desempenho nos jogos e ter de viver sob a sombra constante da demissão. E, dada a visibilidade pública das posições que venham a ocupar, podem até ficar receosos de serem ameaçados, juntamente com seus familiares, por torcedores em mídias sociais, algo que acontece com jogadores, técnicos e mesmo dirigentes dos times. Isso requer um alto nível de inteligência emocional e capacidade de lidar com pressão.
Diante dessas contingências, é desejável que o CEO de um clube tenha afinidade com o futebol. E tal característica realmente é demandada pelas agremiações que buscam esse profissional no mercado. Mas existem muitos outros pontos a serem analisados na composição do perfil desse líder, vários deles exigidos de gestores de outras áreas também. Entre esses atributos aparecem competências como a de saber engajar equipes, liderar a estratégia com segurança, ser veloz no aprendizado e adepto de novas tecnologias e formas de pensamento mais inclusivas, além de agir com excelência operacional para reduzir custos enquanto otimiza a experiência do torcedor.
Por sinal, quem torce para o time é considerado, em modernos sistemas de gestão futebolística, como um autêntico cliente consumidor daquele produto (time), cuja jornada tem de ser estrategicamente pensada e melhorada a cada momento. Não é de se estranhar, então, que um background robusto em marketing e vendas seja tão valorizado nos processos de buscas de CEOs para clubes de futebol. É preciso pensar cuidadosamente em como potencializar aquela marca e na experiência do torcedor, seja no estádio ou fora dele.
Essa busca por lideranças nessa área é intrincada. Requer muita expertise, tanto que consultorias externas são contratadas para comandar a missão de procura dos melhores candidatos. Dados os pormenores culturais que distinguem o setor, nem sempre importar executivos bem-sucedidos de outros segmentos é garantia de sucesso. É preciso equacionar critérios com bases sólidas de conhecimento para minimizar as possibilidades de erro.
Não é muito diferente da construção de um esquema tático para conquistar a vitória nos jogos. Trata-se de posicionar corretamente os talentos para o conjunto funcionar da maneira mais harmônica possível. Quando isso acontece a contento, tudo se torna menos imprevisível, revertendo a lógica de raciocínio do ditado da caixinha de surpresas. Um planejamento bem executado ao profissionalizar a gestão do futebol acaba sendo, assim, o esquema tático ideal para alcançar, sem grandes sustos, os melhores resultados no jogo dos negócios desse esporte adorado por tanta gente.
Luis Giolo é colíder da prática de conselhos e sucessão de diretores executivos de empresa de consultoria de liderança