O diabo como ativo eleitoral
Segundo a leitura cristã da Bíblia Hebraica, a primeira aparição do diabo nas Escrituras aconteceu no Jardim do Éden
Gutierres Fernandes Siqueira
O diabo está em alta na campanha eleitoral de 2022. Recentemente, em um culto evangélico, a primeira-dama Michelle Bolsonaro insinuou que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) é uma providência divina para espantar os adoradores de Satã do Palácio do Planalto. Dias depois, em discurso de campanha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) rebateu dizendo: “Se tem alguém que é possuído pelo demônio é esse Bolsonaro”. Nas eleições de 1989, o mesmo Lula era chamado de “diabo barbudo” em algumas igrejas, remontando a ideia medieval de que o diabo tinha barba de bode. Nas palavras dos adversários políticos, “o diabo é sempre o outro”. Da guerra política, agora vivemos no Brasil uma versão aguda de guerra cósmica e maniqueísta do bem contra o mal.
Segundo a leitura cristã da Bíblia Hebraica, a primeira aparição do diabo nas Escrituras aconteceu no Jardim do Éden. No Gênesis, a serpente astuta enganou Adão e Eva, que acabaram comendo do fruto proibido. A estratégia da serpente foi simples: convenceu o primeiro casal de que o consumo do fruto não causaria nenhum mal, mas que a proibição de Deus era uma estratégia egoísta do Criador para privá-los do conhecimento libertador. Em um diálogo direto com Eva, o diabo disse: “Deus sabe que, no dia em que do fruto comerem, seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gênesis 3:5). Segundo o astuto animal, Deus não estava sendo sincero, mas o Todo-Poderoso proibiu o consumo do fruto para detê-los do conhecimento capaz de torná-los divindades plenas. O diabo, usando do cinismo e da desconfiança, inaugurou no Éden o fenômeno da pós-verdade.
Na pós-verdade, os fatos não importam, o que importa são as narrativas. Em essência, a pós-verdade é o uso constante e consciente da mentira e do engano para ganhos políticos e de poder. A palavra diabo vem do hebraico satan e do grego diabolos e significa falso acusador, difamador, caluniador e enganador. Nas Escrituras, a mentira é a essência do diabo e o próprio Jesus Cristo disse que o diabo “é o pai da mentira” (Evangelho de João 8:44).
Embora a busca da verdade não seja o objetivo central da democracia, a falta de compromisso com a verdade é uma ameaça constante ao Estado Democrático de Direito. Os regimes autoritários e totalitários desprezam a transparência, a imprensa livre e a prestação de contas porque necessitam do controle de narrativas criando seus próprios “fatos”. Os populistas desqualificam a mediação da mídia porque acreditam que comunicam a “sua verdade” diretamente ao “povo” – todavia, o “povo”, na boca do populista, é sempre quem o apoia. Os opositores são o “não-povo”; os inimigos da pátria.
Sabemos que a eleição de 2022 será um festival de notícias falsas nas redes sociais (as chamadas “fake news”) e até, infelizmente, nos púlpitos das igrejas. A ampliação dessas notícias é um desafio à democracia e ao Estado de Direito. É aí onde está o diabo. O Satã mora nos detalhes do engano e do autoengano. O diabo da pós-verdade semeia dúvida, desconfiança e cinismo diante do mundo estabelecido. O conhecimento advindo do fruto proibido é o conhecimento que despreza a construção coletiva da verdade. O conhecimento nunca é apenas “a minha verdade”, mas é a soma de análises e descrições promovidas pelas instituições (universidades, imprensa, comunidades, famílias, religiões, judiciário, senso comum, ciência, etc.) e pelo indivíduo no livre pensar.
A serpente semeou no primeiro casal o colapso da confiança e a semente da animosidade. O resultado final foi a expulsão de Adão e Eva do Paraíso e eles passaram a habitar no leste do Éden. Na democracia, o leste do Éden é a tirania, o autoritarismo e a barbárie.
Gutierres Fernandes Siqueira é jornalista, teólogo e autor de “Quem tem medo dos evangélicos? Religião e democracia no Brasil de hoje”