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domingo, 22 de dezembro de 2024
Opinião

Quarta-feira de cinzas no País

Há 50 anos, Gal começou a encantar o mundo com suas interpretações doces e convidativas.

Postado em 10 de novembro de 2022 por Redação

Augusto Diniz

Desde as 11h45, uma estrofe da canção “Saudosismo”, interpretada por Gal Costa no disco de 1969 que leva o nome da cantora baiana no título, não sai da minha cabeça.

“Eu, você, depois

Quarta-feira de cinzas no País

E as notas dissonantes se integraram

Ao som dos imbecis”

A voz doce, suave e aguda da soteropolitana Gal, que nasceu Maria da Graça no dia 26 de setembro de 1945, inundou a memória imediatamente após ler a notícia da morte da mais nova integrante dos Doces Bárbaros, quarteto baiano formado por Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. Nos deixou aos 77 anos após um infarto fulminante em São Paulo. Fulminante foi a saudade, acompanhada do espanto causado no mundo da música e nos fãs, que a sua partida despertou em nós. 

Sei que a experiência e a admiração por “Saudosismo”, letra composta pelo bárbaro Caetano Veloso, que completou 80 anos em 2022, é uma preferência pessoal. Mas, mesmo que você não seja tão fã de Gal Costa e dos quatro da Bahia, aqui ou ali já esbarrou com algum sucesso reverberado nas trilhas sonoras das novelas ao longo das últimas cinco décadas. Seja ao ouvir a voz suave de Gal em “Baby”, um manifesto tropicalista que brinca com a marcha contra a guitarra elétrica, aquela mesma da qual hoje Gilberto Gil se arrepende, de certa forma, de ter participado.

“Você precisa tomar um sorvete

Na lanchonete, andar com gente

Me ver de perto

Ouvir aquela canção do Roberto”

Quando o disco que ficou marcado como símbolo da tropicália sai no Brasil, batizado “Tropicália ou Panis Et Circencis”, em 1968, a escolhida para interpretar “Baby” no álbum foi Gal Costa. Ela, a cantora baiana que começou a carreira musical cantando ao vivo músicas de Caetano e Gil, lança seu primeiro registro de estúdio ao lado de Caê no ano de 1967. E a gravação conjunta só veio mesmo porque a gravadora só tinha dinheiro para lançar um LP, “Domingo”.

Ali, há 50 anos, Gal começou a encantar o mundo com suas interpretações doces e convidativas. “Coração Vagabundo” surge com abertura do disco. Um álbum que traz, entre várias músicas memoráveis, “Avarandado”, outra composta por Caetano. Essa que foi regravada pela mesma Gal Costa em seu último trabalho de estúdio, “Nenhuma Dor” (2021), na companhia de Rodrigo Amarante, do Los Hermanos, nos vocais. 

Depois da experiência de gravar composições de músicos de diferentes gerações da música popular brasileira, das mais novas, como a Rainha da Sofrência, Marília Mendonça, Dani Black, Tim Bernardes e Emicida, e nomes consagrados há mais tempo, como Adriana Calcanhotto, Guilherme Arantes, Paulinho Moska, Nando Reis, Djavan, Jorge Mautner, Erasmo Carlos e Gilberto Gil, no álbum “A Pele do Futuro” (2018), e sua versão ao vivo, Gal resgatou os grandes sucessos que interpretou com diferentes parcerias.

“Cada palma enluarada

Tem que estar quieta, parada

Qualquer canção, quase nada

Vai fazer o sol levantar

Vai fazer o dia nascer”

Ela nos deixou um ano depois de entregar um disco recheado de parcerias com novas e consagradas vozes da música brasileira. Entre eles estão Silva, Rodrigo Amarante, Zé Ibarra, Seu Jorge, Tim Bernardes, Rubel e Zeca Veloso. Tinha espaço para o também talentoso cantor uruguaio Jorge Drexler e o português António Zambujo. 

Essa experiência musical proporcionada pelas dez faixas do disco “Nenhuma Dor” me acompanhou em casa em diferentes momentos da vida no último ano. Muitas vezes o vinil nem saía da agulha. Era só acordar, ligar o som e colocar Gal Costa cantando “Paula e Bebeto”, sucesso escrito pelo Bituca Milton Nascimento e Caetano, nessa gravação na parceria com o rapper Criolo, para dar ânimo ao dia que começava.

“Eles partiram por outros assuntos, muitos

Mas no meu canto estarão sempre juntos, muito

Qualquer maneira que eu cante esse canto

Qualquer maneira me vale cantar”

A xícara de café até dava mais energia. Tínhamos a certeza de que, em algum momento, voltaríamos a ver a Gal ao vivo em Goiânia ou em qualquer outro lugar. Como foi no dia 21 de maio, quando ela se apresentou no palco do Teatro Rio Vermelho. Foi a última vez que a baiana passou pela capital goiana. Um show repleto de hits, uma plateia morna e uma Gal Costa não tão empolgada assim com a reação do público à sua voz, não mais igualmente aguda e doce como nas décadas anteriores, mas com graciosa novidade da rouquidão grave da experiência de uma diva no palco.

“Nenhuma Dor” é um álbum que virou trilha sonora garantida até da última mudança que fiz. Ele estava na antiga e segue presente na nova casa. A casa é tomada pela voz de Gal Costa e agradece toda vez que é ela a escolhida para encantar o espaço. Por isso, lidar com a morte foi tão complicado. Segurar o choro para conseguir falar, em alguns momentos, parece mais natural do que eu imaginava. E poucas partidas de artistas me impactaram tanto. Antes dela, talvez só a morte de Mark Lanegan, aos 57 anos, em fevereiro.

Pela distância de estilos entre os dois artistas, fica fácil de perceber que parece ter algo de estranho nessa história. Durante a adolescência, eu era daqueles garotos chatos que achava que só o rock prestava e todo o resto do universo da música não passava de uma grande porcaria.

A maturidade foi me mostrando que é preciso abrir horizontes e dar uma chance para outros estilos. Tanto que meu gosto pela música brasileira dos anos 1960 é algo novo. Não era uma constante até a primeira década dos anos 2000. Já fui o chato que falava mal de música sertaneja, claro. A equação parece meio óbvia. Bobo fui de não aceitar que a diferença é parte natural da vida. Principalmente na música.

Dos Doces Bárbaros, ainda me falta conseguir assistir a um show da Maria Bethânia. Todos os outros três – Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso -, consegui ver de perto mais de uma vez. Se não fosse tão imaturo antes talvez pudesse ter ido a mais shows desse quarteto baiano. Mas fazer o quê? 

Ver os depoimentos dos amigos da vida e da música de Gal nas redes sociais e em entrevistas na tarde ontem arrancou lágrimas de muita gente. Do Caetano dizendo no Estúdio i, da GloboNews, “que turma doida!” para definir a junção artística dele com Gal, Gil e Bethânia, que tirou risadas em meio ao choro incontido dos fãs, a um perdido e inconsolável Gilberto que pouco conseguiu dizer sobre a doçura e suavidade de Gal. Se limitou a exteriorizar a falta das palavras no momento da dor: “Sei lá, né? Sei lá!”.

“Em choque, triste demais, difícil demais.” Foi assim que Maria Bethânia definiu a morte de Gal Costa, ao cair no choro e reconhecer a incredulidade da situação. “Eu nunca pensei um dia chegar a vocês para falar a vocês sobre a dor de perder Gal. O Brasil que ela sempre encantou com sua voz única, magistral, hoje inteiro chora como eu. Uma amiga, que mesmo longe, sempre mantive admiração e respeito. Deus a receba na sua mais pura luz. É triste demais, difícil demais, muito duro.”

Esse depoimento de Bethânia, publicado hoje nas redes sociais da cantora, me lembrou das palmas contidas enquanto Gal Costa interpretava “Maria, Maria”, do Bituca, no final de maio em Goiânia. Uma música que virou símbolo da mulher batalhadora e guerreira, bem como era mesmo Gal, ou Maria da Graça, que desafiava a ditadura militar com sua arte. 

“Mas é preciso ter força, é preciso ter raça

É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca

Maria, Maria mistura a dor e a alegria”

Se nem nós entendemos até agora como deixaram Gal Costa morrer numa “quarta-feira de cinzas”, como ela canta “Saudosismo”, o que esperar de Milton, que se despede dos palcos no domingo (13) em um Mineirão lotado. Podemos imaginar que “A Última Sessão de Música” será, merecidamente, um momento de celebração, não só a Bituca, o carioca mais mineiro do Brasil, mas também a Gal, que por tantas vezes nos fez transformar lágrima em esperança, dor em alegria. É triste imaginar que vai continuar a existir um mundo sem Gal Costa. Mas é feliz aquele que sabe que sua carreira será reverenciada enquanto a humanidade existir.

Augusto Diniz é jornalista

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