Fé que move gerações: romeiros percorrem longas jornadas até Trindade
Entre carreiros, cavaleiros e famílias inteiras, a Romaria do Divino Pai Eterno reúne testemunhos de milagres, gratidão e resistência — relatos que reforçam a força da fé mesmo diante das dores, distâncias e desafios da vida

Micael Silva e Eduarda Leite
A Romaria do Divino Pai Eterno, em Trindade (GO), é marcada por histórias de fé, promessas e gratidão que atravessam gerações. Entre os milhões de fiéis que percorrem os 18 quilômetros da Rodovia dos Romeiros, há devotos que caminham muito mais — físico e espiritualmente. É o caso de Edmar de Souza Machado, carreiro de Piracanjuba, que chegou à cidade após sete dias de viagem com um grupo de 15 pessoas, entre vizinhos, amigos e o irmão.
“Cada dia que passa, eu fico mais devoto do Divino Pai Eterno. A gente chega, lembra dos que ficaram no caminho, dos que já morreram… É muita emoção”, relata Edmar, visivelmente comovido ao desembarcar com sua comitiva. Desde 2010 ele participa da romaria com carro de boi, mas a fé nasceu bem antes.
A primeira promessa foi feita no ano 2000, quando o filho ainda pequeno enfrentava problemas nas pernas. “Ele era um menino sadio, mas de repente começou a sentir dor e chorar. Minha esposa viu que ele não conseguia andar direito. Levou no médico em Piracanjuba, que enfaixou, mas disse que o caso era grave. Naquele dia tinha grupo de oração lá em casa, e a gente orou por ele”, lembra. No dia seguinte, a família foi a Goiânia. “Chegamos lá, o médico fez exames e disse que ele não tinha nada. As chapas mostram o antes e o depois. Guardei tudo até hoje.”
Desde então, Edmar cumpre a promessa. Começou vindo a cavalo, depois se uniu aos carreiros — tradição herdada do pai — e não deixou mais de participar. “São 25 anos vindo. De carro de boi, desde 2010. Cada romaria é uma bênção nova.”
Além da fé, guarda com carinho uma réplica da antiga igreja de Trindade, que ganhou como homenagem em um desfile de carreiros. “Tem um senhor que faz essas miniaturas e doa pra um carreiro todo ano. Fui sorteado há três anos. Tenho ela guardada com muito orgulho.”
A história de Edmar se junta à de tantos outros romeiros que chegam a Trindade movidos pela fé. Na caminhada, cada passo carrega lembranças, promessas e agradecimentos. “O povo de Goiânia vem de madrugada e acha difícil. A gente saiu faz sete dias. Mas quando chega aqui e vê que conseguiu, é uma alegria que não dá pra explicar. Só agradecer.”
Outro exemplo de devoção vem do agricultor Adenilson Loures Gondim, também de Piracanjuba. Devoto há 25 anos, ele faz a viagem com familiares. “Esse ano viemos em dois carros, com dez pessoas da família: irmãos, primos. Levamos quatro dias na estrada”, conta.
Em 2008, Adenilson passou por um momento marcante que reforçou sua fé. Após sete meses com uma infecção grave na perna, pediu ajuda espiritual. “Faltavam dois meses pra romaria. Pedi ao Divino Pai Eterno que me mostrasse um caminho. Um padre indicou um tratamento natural em Montalvânia. Fui, tomei os remédios, e em 15 dias a dor sumiu. Voltei a caminhar e consegui vir para a romaria. Foi uma bênção.”
Para ele, a romaria é mais que tradição: é parte da identidade. “Desde pequeno eu via os carros saindo e sonhava em vir. Meus pais não deixavam por ser perigoso. Quando cresci, comecei a participar. Quem tem fé e gosta da tradição, eu recomendo: é bom demais.”
Já Ornello Rodrigues Ferreira, autônomo e comerciante, percorreu 130 quilômetros com a família, todos vestidos de azul. Com mais de 30 anos de romaria, ele destaca a fé como alicerce diário. “Cada ano está melhor. A organização, o acolhimento… mas o mais importante é a fé. O dia a dia já é difícil demais. Se a gente não se apegar com Deus, com o Divino Pai Eterno, fica mais difícil ainda.”
Ele viajou com 14 familiares. “A gente acredita muito. Mesmo sem ter uma experiência pessoal marcante, ver tudo isso acontecendo aqui, tantas histórias, tantos milagres, fortalece a gente.”
A Romaria do Divino Pai Eterno não é apenas uma celebração religiosa: é um encontro de histórias. Por trás de cada carreiro, cada peregrino, há uma promessa cumprida, um agradecimento ou o simples desejo de estar mais perto da fé. Em Trindade, cada passo seja de boi, a cavalo ou a pé é uma oração que ecoa pelas gerações.
“Montei no cavalo e não parei até chegar na igreja”, diz devota em sua primeira romaria
A fé, muitas vezes, é construída a partir de experiências vividas — e foi assim com Ana Laura, que participou pela primeira vez da Romaria do Divino Pai Eterno este ano, acompanhada do marido, Paulo Ricardo. O casal saiu de São Luís de Montes Belos e percorreu o trajeto montado a cavalo durante quatro dias até chegar a Trindade.
“Foi uma sensação de agradecimento. Inexplicável. Não tem palavra que defina o que é viver isso”, disse Ana Laura, emocionada, ao final do trajeto. Embora seja o primeiro ano dela na romaria, Paulo é romeiro de longa data. Ele conta que já veio a pé várias vezes e, nos últimos três anos, passou a fazer o percurso montado. Desta vez, porém, a viagem teve um significado ainda mais especial. “É muito bom ter a pessoa que a gente ama ao lado nesse momento tão especial. A fé se fortalece.”
Casados há apenas seis meses, eles decidiram fazer juntos a primeira romaria. Ela conta que sempre teve vontade de participar, mas que a motivação do companheiro foi essencial para dar o passo. “Com certeza ele ajudou muito. E eu consegui, não parei hora nenhuma. Não desci do cavalo, não entrei no carro, vim montada o tempo todo até chegar à igreja.”
Paulo destaca que a tradição já faz parte da identidade dele e que pretende manter esse costume na família pelos próximos anos. “É algo que nos une, que nos transforma. Todo ano estou aqui e agora, com ela ao meu lado, é ainda mais marcante.”
A história dos dois se soma às de milhares de fiéis que chegam a Trindade movidos por uma fé que ultrapassa o cansaço e o tempo. Para Ana Laura, esse primeiro ano foi só o começo: “Fortaleceu minha fé em tudo. Na vida, nas lutas. Viver isso aqui não tem explicação.