Saúde mental indígena entra na pauta com nova formação da Fiocruz
Curso online gratuito propõe estratégias culturalmente adequadas para profissionais que atuam com jovens indígenas em situação de sofrimento psíquico
A crise na saúde mental de jovens indígenas tem se aprofundado no Brasil nos últimos anos. Casos de depressão, uso abusivo de substâncias psicoativas, ideação suicida e sofrimento psíquico têm alarmado lideranças indígenas, pesquisadores e instituições de saúde em todo o país. À sombra de um cenário que mistura racismo estrutural, apagamento histórico, perda de territórios e abandono de políticas públicas, uma nova iniciativa tenta enfrentar esse desafio com uma abordagem inovadora e sensível ao contexto cultural dos povos originários.
A Fiocruz Brasília, em parceria com o Campus Virtual Fiocruz, lançou o curso Promoção da saúde mental de jovens indígenas, formação online, gratuita e autoinstrucional voltada para profissionais da saúde, da educação e da assistência social. O foco está naqueles que atuam na Atenção Primária à Saúde (APS) e mantêm contato direto com comunidades indígenas. A proposta foi desenvolvida com apoio do Ministério da Educação (MEC), por meio do edital Inova Educação – Recursos Educacionais Abertos (REA), e reúne evidências científicas, escuta territorial e valorização dos saberes tradicionais.
A formação parte de uma perspectiva interseccional, articulando conceitos de saúde mental, bem-viver e juventude indígena com políticas públicas e práticas de cuidado enraizadas nos territórios. Um dos diferenciais está no terceiro módulo do curso, que destaca os saberes tradicionais dos povos indígenas como ferramentas essenciais de promoção da saúde mental. A ideia é reconhecer não só os fatores de adoecimento, mas também os modos próprios de cuidado presentes nas comunidades, muitas vezes ignorados pelas estruturas convencionais do Sistema Único de Saúde (SUS).
A coordenadora geral da formação, Kellen Gasque, pesquisadora da Fiocruz Brasília e responsável pelo Núcleo de Pesquisas da Rede UNA-SUS, explica que a proposta nasceu a partir de experiências diretas em aldeias, quilombos e postos de saúde que atendem jovens indígenas. As visitas revelaram uma lacuna urgente: os profissionais que atuam nesses contextos muitas vezes não possuem instrumentos adequados para lidar com as especificidades culturais e os sofrimentos psíquicos vivenciados por esses jovens. Segundo ela, a iniciativa visa suprir essa carência com ferramentas que unam conhecimento científico e escuta intercultural.
O curso é dividido em três módulos. O primeiro apresenta uma introdução aos conceitos de saúde mental, bem-viver e juventude indígena sob o olhar da interseccionalidade. O segundo explora as estruturas do SUS e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), destacando as especificidades da atenção à saúde indígena no Brasil. Já o terceiro módulo se volta diretamente aos saberes indígenas, abordando práticas comunitárias, espirituais e educativas que contribuem para a prevenção de agravos psíquicos entre adolescentes e jovens.
A formação, embora tenha foco nos profissionais de saúde e assistência, também interessa a educadores e gestores públicos. Ao incorporar elementos da educação popular em saúde, o curso propõe um diálogo contínuo entre a técnica e a vivência dos territórios, incentivando a construção de políticas públicas mais próximas das realidades locais. Para a Fiocruz, o objetivo não é apenas formar profissionais mais preparados, mas também fortalecer os vínculos comunitários e promover o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas à saúde integral.
O coordenador acadêmico do curso, James Moura Junior, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), destaca que a construção do conteúdo se deu com base em pesquisas de campo e articulações com jovens indígenas de diversas regiões. Essa aproximação permitiu mapear demandas reais e produzir um material que, além de informativo, reconhece os jovens indígenas como protagonistas de sua própria saúde. O curso apresenta também o Programa de Cultivo da Saúde Mental Indígena nos Territórios, iniciativa que valoriza ações educativas inspiradas nas tradições orais, espirituais e comunitárias.
Nos últimos anos, diversos estudos têm alertado para a vulnerabilidade psicossocial da juventude indígena no Brasil. A ausência de políticas específicas, aliada ao impacto do racismo, das mudanças climáticas e das disputas territoriais, tem ampliado a sensação de desamparo em muitas comunidades. A pandemia de covid-19 intensificou esses efeitos, ao isolar aldeias e interromper atividades coletivas importantes para o bem-estar e o pertencimento. O lançamento da formação surge, assim, como uma resposta concreta diante de um cenário que exige ação imediata, mas também sensível.
A aposta da Fiocruz é que o curso contribua para a formação de redes de cuidado mais eficazes, capazes de acolher os jovens indígenas com respeito às suas identidades, práticas culturais e formas próprias de lidar com o sofrimento. Trata-se de uma política de saúde mental que vai além dos protocolos clínicos, reconhecendo a diversidade como pilar para a construção de cuidado.
As inscrições já estão abertas, e o conteúdo pode ser acessado gratuitamente na plataforma do Campus Virtual Fiocruz. Ao final, os participantes receberão certificado.