Violência é mais preocupante na periferia
De acordo com números do Atlas da Violência, o número de homicídios de indivíduos negros mais do que dobrou na última década
Igor Caldas*
Especial para O Hoje
O número de assassinatos de indivíduos negros mais que dobrou no Estado de Goiás nos últimos 10 anos. De acordo com os dados levantados pela última edição do Atlas da Violência, a taxa de homicídios de pessoas negras cresceu 117,1% no período entre 2007 e 2017. Também houve aumento de mortes por policiais no Estado. De acordo com o último levantamento do Monitor da Violência, a taxa de homicídios por policiais militares e civis triplicou nos últimos três anos.
Os dados de mortes por policiais foram coletados através de uma pesquisa de parceria entre o um portal de notícias e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mostram que a taxa de homicídios cometidos pelas forças policiais do Estado saltou de 2,1 pessoas por cada 100 mil habitantes em 2015 para 6,1 em 2018. Isso deixa Goiás ao lado dos oito estados onde a polícia mais mata, como Rio de Janeiro e Bahia.
Para Eronilde Nascimento, integrante da ONG Mães de Maio do Cerrado: Do Luto à Luta, esses números andam juntos. Ela iniciou a luta contra a violência do Estado e o genocídio de pessoas negras após seu esposo ser executado durante a desocupação do Parque Oeste Industrial em 16 de fevereiro de 2004. Após seu momento de luto, Eronilde passou a levantar a bandeira por memória e por justiça pelo caso no Parque Oeste e acabou conhecendo muitas famílias em Goiânia, com filhos desaparecidos após abordagem policial. Filhos que foram assassinados pelo Estado.
“Através da luta, eu comecei a entender o porquê meu marido foi executado. O porquê dele ser morto lutando por um direito básico, que é o direito à moradia. Depois que a gente veio do Parque Oeste, o mesmo Estado que matou lá, continua matando aqui. Porque parte dos nossos jovens foram assassinados e outros estão encarcerados. Eu comecei a dialogar com essas mães em cima do que eu tinha entendido”. Ela ainda afirma que o aumento dos números de mortes está estreitamente relacionado à desigualdade social.
Desigualdade pesa
“A desigualdade pesa muito para isso. Eu entendo também que é uma forma do Estado estar exterminando a gente. Acho que fica mais barato para eles investirem em armas, fica mais barato para eles deixarem a droga liberada na periferia e vir com a desculpa de que prendem e de que a Justiça é feita. Fica bem mais barato para eles não ter que investir em educação, em cultura, em lazer. Eu tiro essa experiência da periferia que eu vivo”, afirma Eronilde.
Desigualdade alimenta a violência na periferia
A taxa de desigualdade social no Brasil atingiu valores nunca antes vistos, sobretudo entre negros e brancos. De acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/IBRE), o índice de desigualdade entre os brasileiros atingiu o maior patamar registrado no primeiro trimestre deste ano.
De acordo com outro estudo Do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado este ano, a desigualdade de renda entre brancos e negros cresceu nos últimos cinco anos. De acordo com a pesquisa, os brancos possuíam renda de quase duas vezes a da população negra em 2017.
Varridos para a periferia
Eronilde afirma que a situação excludente da população mais pobre resulta em mortes dos jovens que se envolvem com o crime, sobretudo na periferia. “Esse sistema é uma máquina de moer pobre. Quem está encarcerado é a gente, quem está morrendo é a gente. Nos negaram o direito à cidade. Aqui a gente não tem cultura, a gente não tem lazer. Fomos varridos para a periferia. Aí, quem é que está dentro do bairro para receber a gente? A droga. E quando alguém tem que morrer por que não são os fabricantes?”, questiona.
Ela considera que as os jovens da periferia mortos pelo envolvimento no crime também são vítimas do Estado. “Os meninos que morrem no mundo do crime também são vítimas do Estado. Porque a falta de oportunidades é uma forma de o estado matar também. A resposta para a diminuição desses números seria políticas públicas voltadas para essa classe que está sendo exterminada. Ao invés de investirem em armas, de querer investir em presídios, que construíssem mais escolas”.
A última edição do Atlas da Violência também questiona a efetividade do investimento em coerção policial e aumento de penas de encarceramento na diminuição de crimes e homicídios. O documento afirma que o ciclo de violência, ao invés de ser interrompido por políticas públicas efetivas calcadas no trabalho de inteligência policial, mediação de conflitos e na prevenção social ao crime, foi alimentado por apostas retóricas no inútil e perigoso mecanismo da violência para conter a violência.
O estudo cita a urgência de se pensar em política de segurança pública nacional unificada. Tais políticas não poderiam abrir mão do conhecimento científico especializado, ainda mais em um cenário de ajuste fiscal severo, em que os recursos escassos devem ser efetivos. A principal questão passa por estruturar políticas de Estado visando a prevenção social do crime, com ações focalizadas na infância e na juventude, e nos territórios mais vulneráveis.
Para Eronilde, esse trabalho de prevenção social do crime tem que ser feito em todas as periferias do Brasil. “O mais triste é a gente perceber que esse problema não é só daqui. Porque se essa realidade fosse só aqui dentro do Real Conquista, estava fácil de a gente mudar a situação. Porque a gente ia para cima, igual a gente faz, mas infelizmente não é só aqui. É em tudo quanto é periferia. Não é fácil de mudar”.
Coerção policial
Além disso, outro ponto central abordado no estudo é a mudança de ênfase do trabalho de coerção policial para um modelo baseado fortemente em investigação e inteligência, em detrimento da crença única no policiamento ostensivo e na repressão ao varejo das drogas. A taxa de investigação em território nacional é baixíssima, porque o sistema de investigação está sucateado, obsoleto e sobrecarregado, pela falta de recursos públicos.
Muitas vezes, os inquéritos são abertos apenas quando o criminoso é preso em flagrante. Enquanto isso, nossos recursos são alocados para prender e superlotar os presídios com presos de baixa qualidade, geralmente nos flagrantes, que ajudam a dinamizar as facções criminosas e alimentar ainda mais o ciclo da violência.