Fogos de artifício com barulho transformam festas em crises e colocam saúde e bem-estar em risco
Lei em vigor em Goiás proíbe estampidos de fogos de artifício, mas prática ainda persiste e provoca sofrimento em crianças atípicas, pessoas sensíveis a ruídos e animais
A contagem regressiva para o Ano-Novo costuma ser acompanhada por fogos de artifício, mas, para muitas famílias, o barulho que simboliza a festa se transforma em medo, angústia e sofrimento. Crianças com hipersensibilidade sensorial, pessoas com transtornos neurológicos, idosos e animais domésticos estão entre os mais afetados pelos estampidos, que persistem mesmo diante de uma lei estadual que proíbe o uso de fogos com efeito sonoro em Goiás.
Pai de uma criança atípica, o goiano Gustavo Rodrigues relata que o período de virada do ano é vivido com apreensão dentro de casa. “Quando começam os fogos, meu filho entra em crise. Ele chora, tampa os ouvidos, fica desorganizado, tenta fugir. Não é birra, é dor. É sofrimento real”, afirma.
Segundo ele, a família tenta se preparar fechando portas e janelas, usando abafadores de som e mantendo o ambiente controlado, mas os cuidados nem sempre são suficientes. “É angustiante perceber que algo que deveria ser evitado continua acontecendo.”
A psicóloga Nathanne Ciriaco, especialista em Análise do Comportamento Aplicada ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), explica que o impacto dos fogos com estampido está diretamente ligado à forma como o cérebro processa estímulos sensoriais. “Pessoas com TEA frequentemente apresentam hipersensibilidade sensorial, especialmente auditiva. Os fogos com estampido produzem sons altos, súbitos e imprevisíveis, que podem ser percebidos como extremamente dolorosos ou ameaçadores”, explica.
Segundo a especialista, as reações podem variar, mas incluem medo intenso, choro, irritabilidade, agitação, tentativas de fuga, tampar os ouvidos e desorganização comportamental.
Nathanne ressalta que o barulho intenso pode desencadear crises sensoriais graves. “Durante a sobrecarga sensorial, o cérebro da criança autista tem dificuldade em filtrar estímulos. O sistema nervoso entra em estado de alerta extremo, ativando áreas relacionadas ao medo e ao estresse, como a amígdala. Isso gera respostas de luta, fuga ou paralisação, levando a crises que não são birra, mas uma reação neurológica à incapacidade de processar o excesso de estímulo”, pontua.
O impacto dos fogos não se restringe às pessoas. Animais domésticos, especialmente cães e gatos, também sofrem com o barulho. Tremores, tentativas desesperadas de fuga, vocalização excessiva, taquicardia e até acidentes graves são registrados com frequência nesse período. Clínicas veterinárias relatam aumento significativo nos atendimentos durante festas com uso de fogos, reflexo do estresse extremo provocado pelos estampidos.
Lei Estadual proíbe a queima de fogos de artifício de alto impacto
Desde novembro de 2022, Goiás conta com a Lei Estadual nº 21.657, que proíbe a queima, soltura e manuseio de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos de alto impacto ou com efeito de tiro. A norma vale para ambientes abertos e fechados, públicos ou privados, e permite apenas fogos com efeitos visuais, sem barulho significativo. O descumprimento pode resultar na apreensão do material e aplicação de multa.
Apesar da legislação, a prática ainda é comum, sobretudo na virada do ano. Para a psicóloga, o desrespeito à lei evidencia a falta de conscientização coletiva. “Celebrar não precisa causar sofrimento. A sociedade pode ser mais empática adotando fogos sem estampido, respeitando legislações existentes, divulgando horários de eventos com antecedência e promovendo conscientização sobre os impactos do ruído”, defende Nathanne Ciriaco.
Para famílias afetadas diretamente pelo problema, a discussão vai além da tradição. “Não queremos acabar com a festa de ninguém. Só queremos que as pessoas entendam que o barulho machuca. Dá para comemorar com luz, sem causar dor”, resume Gustavo.
“Pensar na inclusão de pessoas autistas, crianças atípicas e animais é um exercício de responsabilidade coletiva, cuidado com a saúde mental e respeito à diversidade humana e ambiental”, conclui Ciriaco.
Às vésperas do Ano-Novo, o debate sobre fogos de artifício expõe um conflito entre costumes e responsabilidade social. Em um Estado onde o uso de fogos com barulho é proibido por lei, a escolha entre manter o estampido ou respeitar o silêncio necessário pode definir se a virada do ano será marcada por celebração ou por sofrimento invisível dentro de muitas casas.