A fome se alastra num país que mergulha em seu inferno

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 27 de maio de 2022

No interior de Sergipe, um trabalhador, pai e sustento único de sua família, é morto por asfixia no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF), transformada em câmara de gás pelos policiais. Mas o Brasil saiu do inferno, diz o ministro de um governo que festeja a morte. Na Vila Cruzeiro, favela da zona norte do Rio de Janeiro, numa ação de “inteligência”, agentes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e da PRF chacinam pelo menos 25 pessoas, sempre negros, pobres, desassistidos. Mas o Brasil saiu do inferno, diz o ministro de um governo que festeja a morte.

O ministro, que já foi o “Posto Ipiranga” a prometer soluções para todos os problemas nacionais, exercita seu grande e único talento – a mentira sem pejo nem vergonha, enquanto o País afunda-se em seu inferno, produzindo miseráveis esfaimados de forma galopante, ao mesmo tempo em que o desgoverno instalado em Brasília abre espaços para jogadas e negócios muito especiais para enriquecer aqueles que já são muito ricos, favorecer milicianos e seus associados, num projeto de poder que se baseia na destruição da institucionalidade.

A coleção interminável de estragos produzidos pelo desgoverno de Brasília não poderia trazer resultados diferentes, levando o Brasil a ocupar “lugar de destaque no tema insegurança alimentar”, ainda que o País se coloque numa posição de liderança na produção global de alimentos, registra o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) ao processar os dados da mais recente pesquisa mundial realizada pelo Gallup sobre a insegurança alimentar no mundo. Trata-se de fotografia mais atualizada da fome em escala global e o Brasil surge entre os piores, mais do que dobrando o número de pessoas que enfrentaram dificuldades para comprar comida em algum momento durante o ano pesquisado.

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Recorde negativo

No ano passado, nada menos do que 36% dos brasileiros passaram fome em algum momento e temeram não ter dinheiro para alimentar suas famílias, num recorde desde que a pesquisa começou a ser feita em 2006, penalizando muito mais as crianças, as pessoas com menor escolaridade e as mulheres. Ao atingir em cheio a infância, a insegurança alimentar gera um desafio e uma ameaça gigantesca para o futuro da cidadania e do País como nação, ao condenar aquelas gerações a reproduzirem interminavelmente a tragédia brasileira. Pela primeira, o Brasil superou a média mundial, ainda que por uma pequena margem, já que a insegurança alimentar atingiu 35% da população planetária no decorrer de 2021. Por aqui, os esfaimados dobraram de número desde 2014, quando eram 17% dos brasileiros. Há uma combinação de fatores por trás daquelas estatísticas, a começar pelo aumento no número de miseráveis. Não por coincidência, o avanço no total das pessoas abaixo da linha de pobreza, aquelas que recebem menos de R$ 10 por dia, produz aumento equivalente no número de esfaimados.

Balanço

  • Antes da pandemia, em 2019, anota o economista Marcelo Cortes Neri, diretor do FGV Social, 11% da população, algo em torno de 23,0 milhões de pessoas, estavam abaixo da linha de pobreza, número que chegou a baixar para 9,5 milhões ou 4,8% da população em agosto de 2020 diante do pagamento do auxílio emergencial em sua versão mais generosa, abolida já a partir do final daquele ano. O resultado foi um salto do total de miseráveis para 13% da população total em outubro de 2021, atingindo 27,6 milhões de pessoas, ou seja, praticamente 20% a mais do que na fase imediatamente anterior à instalação da pandemia no Brasil, com mais 4,6 milhões de “novos pobres”, na descrição de Neri.
  • A inflação, gerada pelas distorções econômicas trazidas pela pandemia em todo o mundo e agravada pelas consequências da guerra entre Rússia e Ucrânia, atingiu os mais pobres muito mais fortemente, ajudando a achatar o valor real de seus rendimentos e agravando, portanto, a insegurança alimentar num país que é o principal ou um dos principais protagonistas das exportações mundiais de grãos e carnes.
  • Outros fatores contribuíram para tornar o cenário mais grave. O fim da política de valorização do salário mínimo, em termos reais, acelerou a perda de renda para as famílias mais pobres, reduzindo sua capacidade de consumo, o que inclui, muito obviamente, o consumo de alimentos. A desestruturação das políticas domésticas de segurança alimentar, com o fim da política de estoques reguladores, que permitia ao governo interferir no mercado em momentos de alta intensa de preços (e também de queda) nos preços dos alimentos, tornou a insegurança alimentar mais evidente.
  • Tudo isso num cenário de escalada nos custos da alimentação. Nos 12 meses terminados em abril deste ano, enquanto o Índice Nacional ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulou variação de 12,13%, os preços dos alimentos no domicílio saltaram nada menos do que 16,12%.
  • A situação dos miseráveis é ainda mais preocupante, como mostra a pesquisa do Gallup, ao indicar que a insegurança alimentar entre os 20% mais pobres saltou de 36% em 2014 para nada menos do que 75% no ano passado. Quer dizer, 75 entre cada 100 pessoas entre os 20% mais pobres passaram fome em algum momento ao longo do ano passado, índice que equipara o Brasil às economias mais pobres da África, a exemplo Serra Leoa, Gabão e Benin (que apresentaram taxas de insegurança alimentar, pela ordem, de 77%, 76% e 74%).
  • Enquanto a fome grassa entre os miseráveis, os 20% mais ricos aumentaram sua segurança alimentar em meio a crises e à pandemia. Em 2019, segundo a Gallup World Poll, em torno de 10% da turma dos mais ricos chegaram a temer não conseguir comprar alimentos, percentual que caiu para 7% no ano passado.