Coluna

A queda dos juros e o mito da fuga de investidores nos títulos federais

Publicado por: Sheyla Sousa | Postado em: 11 de fevereiro de 2020

O debate em torno da política monetária (quer dizer, sobre a política de juros) sempre foi enviesado no Brasil. Em geral, a favor das teses mais caras aos tais mercados, que sempre dominaram as decisões nesta área. Um dos mitos que sempre cercaram esse debate e amarraram a administração da dívida pública, tornando-a mais cara do que o necessário, com altos custos fiscais e sociais, jamais considerados pelo debate, diz respeito a uma suposta “rigidez” das taxas de juros. Mais claramente, considerava-se que os juros não poderiam ser mais baixos no País por que isso colocaria sob risco a “rolagem” da dívida gigantesca do Estado.

Resumidamente, cortes nas taxas de remuneração pagas pelo Tesouro aos “donos” da dívida pública (setor financeiro, grandes grupos privados e investidores/especuladores em geral) tenderiam a afugentar esse pessoal, levando a uma fuga daqueles investidores para outras formas mais rentáveis (e menos seguras) de aplicação financeira. Tratava-se, claro, de uma falácia sem tamanho, sempre contestada por economistas e analistas menos ortodoxos, com visão mais ampla dos processos na economia e sobre como se dá o financiamento da dívida pública.

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Havia um bom e sólido argumento para contestar essas teses esdrúxulas. O dinheiro que sempre circulou pelo mercado da dívida, incluindo o famigerado overnight, tem como origem sobras diárias de caixa de bancos e empresas que não poderiam ter outro destino a não ser o mercado aberto da dívida. Fora dali, aquelas sobras de caixa tenderiam a ficar estacionadas, sem remuneração, corroídas pela inflação.

Num intervalo mais longo do que o desejável, as taxas de juros básicas finalmente atingiram níveis mais civilizados recentemente, influenciadas muito mais pela estagnação na economia. O Banco Central (BC) consumiu três anos e quatro meses, um pouco mais, um pouco menos, para derrubar os juros básicos de 14,25% para 4,25% na última quinta-feira, dia 6. Ao longo desse período, desmentindo toda uma construção teórica criada como uma das formas de justificar a prática de juros estratosféricos no Brasil, o overnight continua praticamente do mesmo tamanho, o Tesouro continuou emitindo e vendendo títulos da dívida pública interna normalmente e as tais “operações compromissadas” (venda de títulos pelo Tesouro e pelo BC sob compromisso de recompra a taxas de mercado) mantiveram-se em crescimento.

Gasto trilionário

A fuga de investidores, demonstra-se agora, foi uma criação dos mercados para impedir que o País pudesse conviver com juros menos escorchantes. Mas os analistas a soldo do setor financeiro já construíram uma explicação “lógica” para tentar mostrar porque a queda dos juros não causou uma “hecatombe” na gestão da dívida pública. A justificativa agora é que as medidas de ajuste fiscal em curso e a criação do teto para as despesas públicas deram maior credibilidade à política fiscal e criaram espaço para a redução histórica dos juros. Lérias. O governo chega ao sexto ano consecutivo de déficit e tende a fechar 2020 mais uma vez no vermelho. Os cortes em sequência na taxa básica de juros têm muito mais a ver com o baixo crescimento da atividade econômica, com o desemprego elevado, com o avanço da informalidade e com a capacidade ociosa nas fábricas.

Balanço

·   A insistência nessa política de juros escorchantes terminou por agravar a situação fiscal dos governos, obrigando os governos a gastar R$ 2,056 trilhões entre 2015 e o ano passado, algo como 28,3% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelo BC para 2019, apenas por conta das despesas geradas pela cobrança de juros sobre suas dívidas.

·   Os dados do Tesouro e do mesmo BC mostram um cenário de tranquilidade para a “rolagem” da dívida diariamente. Na posição de dezembro do ano passado, a dívida mobiliária inter na (quer dizer, aquela expressa em títulos do Tesouro) havia alcançado R$ 4,083 trilhões, representando 56,25% do PIB. Ao longo deste ano, em torno de 19,2% do saldo dessa dívida, qualquer coisa em torno de R$ 782,53 bilhões, deverão vencer.

·   Em grande medida, o Tesouro deverá trocar os papéis que vencerão ao longo deste ano por novos títulos da dívida, com vencimento mais à frente (a dívida “nova” emitida no ano passado tinha prazo médio de vencimento de pouco mais de quatro anos). Ou seja, essa parcela da dívida será “rolada” ou terá seu vencimento “adiado” por conta da emissão daqueles títulos. O custo médio dessas emissões também tem caído, embora mantenham-se ainda excessivamente altos – passaram de 7,64% em 2018 para 6,94% no ano passado.

·   Mantidas as taxas básicas em níveis historicamente baixos por um período mais prolongado, aqueles custos tendem a baixar ainda mais – e os mercados sabem disso. Mas nem por isso pararam de verter dinheiro em títulos do Tesouro.

·   As novas emissões da dívida pública interna cresceram quase 12,0% no ano passado, saindo de R$ 659,93 bilhões em 2018 para R$ 738,10 bilhões.

·   Os recursos estacionados por um dia no overnight recuaram apenas ligeiramente entre dezembro de 2018 e o mesmo mês do ano passado, saindo de R$ 1,055 trilhão para R$ 1,046 trilhão (-0,90%). Em relação ao PIB, o dinheiro investido em operações de um dia no over saiu de 15,31% para 14,41%.

·   Mas as operações compromissadas com títulos federais em poder do setor não financeiro aumentaram 9,64%, de R$ 123,624 bilhões para R$ 135,546 bilhões. O dinheiro investido em quotas de fundos de investimento (que incluem títulos federais) aumentou 7,26%, passando de R$ 3,274 trilhões para R$ 3,512 trilhões – uma montanha de dinheiro.

·   A “riqueza” financeira, que inclui aplicações em poupança, títulos privados e públicos, cresceu 7,12% no ano passado, somando R$ 6,803 trilhões (frente a R$ 6,351 trilhões em 2018) e avançando de 92,18% para 93,72% do PIB.