Americanas distribuiu a acionistas 70% do lucro acumulado desde 2015

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 28 de janeiro de 2023

Os grandes bancos brasileiros estão furibundos e não engoliram a nota divulgada no início da semana pelo trio dourado do capitalismo à brasileira, formado pelos bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Querem responsabilizar os “acionistas de referência” da Americanas pelo golpe aplicado contra a empresa ao longo de praticamente uma década e conseguiram, num desdobramento mais recente, que a Justiça determinasse busca e apreensão dos e-mails trocados entre os executivos da varejista.

Como se sabe, o trio literalmente depenou a quase centenária rede de varejo, agora em recuperação judicial, deixando um rombo de R$ 20,0 bilhões, revelado no dia 11 de janeiro, e um passivo que pode atingir R$ 43,0 bilhões, para uma empresa que apresentava um patrimônio líquido consolidado de R$ 14,706 bilhões em setembro do ano passado. Mais claramente, a empresa quebrou, já que seu passivo supera o total de seus ativos (bens e imóveis, as redes de lojas, centros de distribuição, estoques de mercadorias, dinheiro em caixa e até mesmo recursos a receber).

Na nota, o trio alega desconhecer o rombo e tenta transferir a responsabilidade para a empresa de auditoria, a multinacional PwC (antiga PricewaterhouseCoopers), e para os próprios bancos credores da Americanas. Num resumo, controladores e executivos da Americanas decidiram desvirtuar um mecanismo correntemente utilizado pelo setor varejista para tratar o relacionamento com fornecedores em suas demonstrações financeiras, lançando as operações de financiamento da compra de bens e mercadorias como “risco sacado”.

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O sistema, em geral aceito pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), permite que os bancos antecipem o pagamento a fornecedores e a operação não precisa ser anotada pelo varejista em balanço como dívida financeira. No caso da Americanas, a própria empresa atuava diretamente na contratação do financiamento, renegociando juros, prazos e outras condições, mas não fazia o devido lançamento da operação como dívida financeira.

Ao longo de anos, o estratagema permitiu que a empresa acumulasse lucros fictícios, já que as despesas financeiras incorridas estavam camufladas dentro do balanço, escondidas de credores, investidores, fornecedores, autoridades e do público em geral, no que tem sido considerado como a maior fraude do mercado brasileiro de capitais possivelmente de todos os tempos. Uma fraude tratada como “inconsistências contábeis” pelo jornalismo especializado, que continuava a endeusar a trinca de sócios.

Ganhos fantasiosos

Ao não lançar em balanço aqueles compromissos financeiros, a Americanas conseguiu acumular, entre 2015 e setembro de 2022, um lucro somado de pouco mais do que R$ 2,275 bilhões, segundo aponta a série de demonstrativos financeiros e contábeis consolidados, tornados públicos pela empresa. Nesse mesmo período, a empresa havia autorizado a distribuição de dividendos e juros sobre o capital próprio de quase R$ 1,656 bilhão, correspondendo a 72,78% do seu resultado líquido acumulado. Daquele valor, a Americanas havia pago, até setembro do ano passado, em torno de R$ 1,593 bilhão, representando alguma coisa acima de 70,0% dos lucros realizados. Ainda em igual intervalo, os conselheiros e os principais executivos da companhia faturaram uma remuneração consolidada de R$ 618,134 milhões, significando uma média mensal de R$ 6,793 milhões ao longo daqueles 91 meses. A “farra” de lucros distribuídos e da alta remuneração de seus executivos tornou-se possível apenas porque o balanço havia sido maquiado, produzindo lucros fantasiosos ao longo dos últimos anos.

Balanço

  • Os balanços da Americanas registram um salto nos dividendos e juros sobre o capital próprio pagos a partir de 2019. Naquele ano, o balanço consolidado do grupo mostrou um resultado líquido declarado de R$ 704,054 milhões, representando um salto de 85,04% em relação aos ganhos de R$ 380,940 milhões registrados um ano antes (quando já haviam crescido 60,12%, sempre com base nas demonstrações financeiras turbinadas pelo não lançamento de despesas financeiras).
  • Em 2019, foram pagos dividendos de R$ 126,215 milhões, num incremento de 24,06% frente a R$ 101,733 milhões em 2018. Os valores pagos aos acionistas em 2020, no entanto, saltaram 134,5%, atingindo R$ 296,0 milhões. O pagamento havia sido autorizado ainda em 2019, considerando o aumento do lucro fictício da empresa naquele ano. O resultado, no entanto, havia crescido, como visto, pouco mais de 85,0%.
  • Em 2021, a última linha da demonstração de resultados havia anotado um resultado de R$ 543,795 milhões, crescendo, em tese, perto de 38,0% frente ao ano anterior. Foram pagos dividendos de R$ 370,963 milhões ao longo do exercício de 2021, valores aprovados pelo conselho um ano antes, representando uma elevação de 25,3% em relação a 2020.
  • Ainda em 2021, conselheiros e acionistas haviam aprovado a distribuição inicialmente de R$ 508,306 milhões. Em assembleia realizada no dia 22 de dezembro do mesmo ano, no entanto, foi referendada a proposta de distribuição de R$ 550,636 milhões a serem pagos no ano seguinte – um valor recorde, que correspondia a um salto de 336% em relação a 2018.
  • Até setembro do ano passado, a companhia havia pago R$ 333,205 milhões em dividendos e participações, embora a Americanas tivesse acumulado em nove meses um prejuízo de R$ 446,787 milhões.
  • Parece pouco crível que o executivo contratado para presidir o grupo, Sérgio Rial, que comandava ao mesmo tempo o conselho de administração do Santander, um dos credores da Americanas, tenha “descoberto” o esquema ainda na primeira semana de sua breve presidência na rede varejista, aberto tudo ao público para renunciar na sequência e tornar-se, imediatamente depois, uma espécie de “conselheiro” dos “acionistas de referência”.
  • Retrocedendo um tanto mais, Leman, Teles e Sicupira saíram do conselho de administração da varejista, negociado parte do controle em 2021, sem receber o prêmio em geral pago por ações que asseguram a seus detentores o direito de voto dentro da companhia. No mesmo tempo, a Americanas decidiu consolidar todas as suas operações, físicas e virtuais (concentradas na B2W Digital). Mais suspeito, decidiram vender algo próximo a R$ 230 milhões em ações na mesma época.
  • A atuação do celebrado trio dourado do capitalismo brasileiro à frente da Americanas desnuda método e estratégia adotados desde sempre na condução de seus negócios, com foco total na geração de resultados de curtíssimo prazo, mesmo que isso represente o sacrifício das empresas das quais participam (a exemplo do que ocorreu na Kraft Heinz, que havia descoberto “inconsistências” de quase US$ 300 milhões em seu balanço em 2019).
  • Numa anotação final, o capitalismo de rapinagem participa do bloco que assumiu o controle da Eletrobrás desde sua privatização de fato em junho do ano passado.