Baixo acesso ao crédito ainda preocupa agricultura familiar

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 08 de setembro de 2023

A agricultura familiar terá à disposição um volume recorde de recursos para o financiamento da safra que começa a ser cultivada a partir da segunda metade de setembro. O aumento na oferta de crédito, num avanço de praticamente 34,0% em relação aos recursos programados para a safra 2022/23, foi recebida pelo setor com animação contida diante da baixa capilaridade das linhas contempladas pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), das dificuldades enfrentadas pelas famílias para acessar os recursos e dos custos considerados ainda elevados.

O orçamento do Plano Agrícola e Pecuário (PAP) voltou a contemplar, com políticas diferenciadas, o chamado agronegócio empresarial e a agricultura familiar, objetivo caracterizado pelos anúncios das novas normas, realizados em datas distintas pelo governo. Na safra 2023/24, foram destacados para o Pronaf perto de R$ 71,4 bilhões, praticamente R$ 17,8 bilhões a mais do que os recursos programados para o ciclo anterior, ao redor de R$ 53,61 bilhões. Entre outras modificações, o novo plano agrícola trouxe a redução das taxas de juros de 5% para 4% ao ano, entre outros, para arroz, feijão, mandioca, tomate, leite e ovos. Os produtos da chamada “sociobiodiversidade” estarão submetidos a juros de 3% ao ano nas linhas de custeio, com taxas de 4% no crédito para investimento.

Com a inclusão de povos indígenas e quilombolas, as linhas do Pronaf A, destinadas a dar suporte financeiro a assentados do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e a beneficiários do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), tiveram os limites ampliados de R$ 9,0 mil para R$ 12,0 mil para créditos de custeio e de R$ 30,0 mil para R$ 40,0 mil no investimento, com juros variando entre 0,5% neste último caso a 1,5% no primeiro. Foi incluída ainda nova faixa de enquadramento no Pronaf Mulher, contemplando produtoras com renda anual de até R$ 100,0 mil com limite de crédito de até R$ 25,0 mil por safra e juros de 4% ao ano. 

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Reestruturação

O retorno e a reestruturação do Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) foram destacados pelo presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Aristides Santos, assim como por Diego Moreira, da direção nacional do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

“O ministério havia sido desmobilizado e terminamos o ano passado com menos de R$ 40,0 milhões investidos em assistência técnica, uma fração dos R$ 600,0 milhões destinados para esta área em 2015”, observa Santos. Conforme Moreira, o MST espera a retomada da reforma agrária em benefício de 70,0 mil famílias atualmente acampadas no interior o País e que “demandam um plano imediato de assentamento”, além de políticas destinadas a estimular a produção de alimentos básicos com o duplo o objetivo de combater a fome e reduzir a inflação. Uma preocupação central, sustentam ambos, continua sendo o alcance limitado do Pronaf. Segundo Moreira, em torno de 70% das famílias assentadas não têm acesso ao crédito rural e “entre os que conseguem contratar os recursos metade está do Sul do País”.

Balanço

  • Com 4,0 mil sindicatos e 27 federações consolidadas em todos os Estados e no Distrito Federal, a Contag estima que entre 14,0 milhões e 15,0 milhões de pessoas têm na agricultura familiar sua principal fonte de renda, considerando que Censo Agropecuário de 2017, continua Santos, registrou 3,9 milhões de propriedades tocadas por produtores familiares em todo o País. A agricultura familiar responde por 94% da produção de babaçu e 81% do morango, com participação de 69,6% na produção de mandioca, 51,4% no setor de suínos, assegurando 48,5% da banana e 25,9% dos legumes e hortaliças consumidos no País. Metade daquelas fazendas estão na região Nordeste e 1,8 milhão são minifúndios, com até cinco hectares.
  • Os dados mais recentes do Banco Central (BC) mostram um avanço importante nas contratações durante a safra 2022/23, mas queda no total de contratos, especialmente de investimentos, e redução na área financiada, sinais de uma concentração maior na destinação dos recursos, na avaliação de Santos. Foram contratados em torno de R$ 52,539 bilhões entre julho do ano passado e junho deste ano, correspondendo a um incremento de 26,65% em relação aos quase R$ 41,484 bilhões liberados na safra anterior. Mas o total de contratos experimentou recuo de 2,16%, de 1,433 milhão para 1,402 milhão. Na hipótese pouco provável de que cada propriedade tenha contratado uma única operação de crédito, esse número representaria 36% das quase 3,9 milhões de fazendas da agricultura familiar.
  • A distorção parece mais evidente, prossegue Santos, no caso do investimento, que registrou a contratação de R$ 18,221 bilhões no ciclo 2022/23, num aumento de 18,0% diante de R$ 15,440 bilhões no ciclo anterior. Neste caso, o número de contratos baixou de 881,95 mil para 805,28 mil, em queda de 8,7%. A área financiada encolheu 24,0% na mesma comparação, caindo de 2,005 milhões para 1,524 milhões de hectares. As linhas de custeio anotaram crescimento mais acentuado no volume de recursos, que avançou de R$ 24,942 milhões para quase R$ 32,947 bilhões, em alta de 32,1%, do que no total de contratos. Neste caso, a variação ficou limitada a 8,3%, enquanto a área financiada manteve-se quase inalterada, ao redor de 7,322 milhões de hectares em relação a 7,346 milhões na safra anterior.
  • Às vésperas de completar 40 anos, o MST registra aproximadamente 400,0 mil famílias assentadas em 1,5 mil municípios de 24 Estados, cada uma delas respondendo pela exploração de 20 hectares de terra, somando um total aproximado de 8,0 milhões de hectares, conforme Moreira. Em quatro décadas, o movimento organizou 1,9 mil associações, mais 185 cooperativas e um número aproximado de 120 agroindústrias que atuam em 15 cadeias produtivas diferentes, processando mais de 1,7 mil itens, com destaque para arroz, milho e derivados e leite, com produção diária de 7,5 milhões de litros. Individualmente, o movimento tornou-se o maior produtor brasileiro de arroz, colhendo em torno de 42 mil toneladas por ano, e o maior na América Latina na produção de arroz orgânico, com mais de 16,0 mil toneladas colhidas por safra. A produção anual de feijão e soja, complementa Moreira, aproxima-se de 23,0 mil e 2,4 milhões de toneladas respectivamente.
  • As previsões para a safra a ser colhida em 2024, prossegue ele, sugerem aumentos de 10% a 15% na produção de arroz e feijão, depois de experimentarem crescimento médio anual entre 6% a 10% nos últimos anos, na contramão da produção brasileira, que desabou 26,3% e 17,9% desde o começo da década passada naquela mesma ordem. “Se as 70 mil famílias hoje acampadas fossem assentadas e incorporadas ao sistema produtivo, acredito que seria possível aumentar a produção de arroz e feijão em 20% a 25%”, arrisca Moreira.
  • Na mesma linha, a produção de soja convencional e orgânica deverá ser incrementada em alguma coisa na faixa de 20%. “Mas para isso precisamos de investimentos, já que pretendemos avançar para a produção de farejo e óleo”, aponta Moreira. O movimento conversa com a área técnica do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para desenhar um programa de financiamento a agroindústrias de menor porte, para produção de farinha de mandioca, polpa de frutas e beneficiamento de hortaliças, e também indústrias de médio porte, destinada ao processamento de soja e outros produtos.
  • Numa iniciativa de maior fôlego, estrategicamente voltada para promover a soberania alimentar como política de Estado, Moreira sugere um movimento amplo para “ construir um projeto de agricultura sustentável no país, iniciando pelo fomento à produção de alimentos básicos”. Num primeiro passo, o MST propõe um programa de financiamento às famílias de assentados, camponeses, povos tradicionais e ribeirinhos. Na proposta, metade dos recursos seria subsidiada pelo governo e a metade restante seria reembolsada com a entrega de alimentos, por sua vez destinados a reforçar os estoques reguladores e política públicas, a exemplo da merenda escolar.