BC atropela seu mandato ao manter juros na estratosfera

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 23 de junho de 2023

O Banco Central renegou seu próprio mandato, atropelou suas próprias projeções e decidiu ainda ignorar os dados da realidade ao decidir manter, na quarta-feira, 21, a taxa básica de juros em níveis escorchantes de 13,75% ao ano, o que tenderá a dissipar as possibilidades de crescimento mais acelerado da economia, debilitar ainda mais o investimento e ajudar a potencializar o desaquecimento já em curso no mercado de trabalho. Conforme a nota divulgada pelo Comitê de Política Monetária (Copom), o colegiado parece ter dado maior relevância ao “balanço de riscos” de alta inflacionária, levando em conta sobretudo uma suposta “desancoragem maior ou mais duradoura” das expectativas para a inflação no “horizonte relevante”, desprezando todo o conjunto de indicadores que apontam um desaquecimento importante da atividade econômica doméstica e um processo vigoroso de desinflação (quer dizer, de queda da inflação).

O tal “horizonte relevante” considera as projeções do mercado para a inflação em 2024 e 2025, observando-se que a meta inflacionária definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) para aqueles dois anos está em 3,0%. E o que mostram os resultados da pesquisa conduzida pelo próprio BC por meio de seu relatório semanal Focus? Até o final da semana passada, quando foi realizado o levantamento mais recente pelo Focus, os mercados haviam reduzido suas apostas para as taxas inflacionárias de 2024 e 2025 respectivamente para 4,0% e 3,8%. Dentro do intervalo de tolerância admitido pela política de metas inflacionárias (1,5 ponto abaixo ou acima do centro da meta, como se sabe, estabelecido em 3,0% para aqueles dois anos).

Cegueira ou motivação política?

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A alta cúpula do BC “independente” manteve o diagnóstico segundo o qual as expectativas inflacionárias continuariam descontroladas, fora da meta pretendida – de resto, uma observação presente em todas as demais notas mais recentes do colegiado. Há pelo menos quatro hipóteses para esse tipo de reação da diretoria do BC, nenhuma delas favorável ao time de Roberto Campos Neto: arrogância irracional, um pleonasmo por óbvio; cegueira motivada por uma visão da economia baseada em conceitos liberais ultrapassados (o que ajudaria a explicar a arrogância citada anteriormente); incapacidade de analisar o conjunto de dados e informações concretas à sua disposição, o que parece pouco crível; ou, mais grave, disposição politicamente orientada para promover uma espécie de “terceiro turno” fora das quatro linhas do jogo, para usar uma imagem cara ao movimento civil-militar que desgovernou o País entre 2019 a 2022. De uma forma ou de outra, o BC tem extrapolado seus poderes e desconsiderado os interesses maiores do País.

Balanço

  • O Copom menciona rapidamente o “ambiente externo adverso”, a despeito de previsões mais otimistas em relação às perspectivas de crescimento da economia mundial neste ano, e indica que os bancos centrais “das principais economias permanecem determinados em promover a convergência das taxas de inflação para suas metas, inclusive com a retomada de ciclos de elevação de juros em algumas economias”. E parece dar mais crédito a essa análise do que ao cenário observado aqui dentro.
  • Já no parágrafo seguinte, o comitê registra, aparentemente como mera formalidade, que “o conjunto de indicadores mais recentes da atividade econômica segue consistente com um cenário de desaceleração da economia nos próximos trimestres. O Copom até reconhece que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre se deveu principalmente ao “forte desempenho do setor agropecuário”.
  • Chega a reconhecer uma tendência de “arrefecimento recente” dos índices inflacionários, mas emenda em seguida que a taxa de inflação acumulada em 12 meses deve voltar a subir no segundo semestre, ao mesmo tempo em que “diversas medidas de inflação subjacente seguem acima do intervalo compatível com o cumprimento da meta para a inflação”.
  • Na primeira parte daquela argumentação, a equipe do BC deixa de anotar ou esconde mesmo que a elevação da taxa acumulada da inflação ocorrerá por mero efeito estatístico. As taxas de inflação em julho, agosto e setembro do ano passado ficaram negativas artificialmente, como resultado das medidas eleitoreiras adotadas pelo governo para derrubar os preços da energia e dos combustíveis, um dos principais focos de alta inflacionária ao longo do ano passado.
  • Para relembrar, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) registrou quedas de 0,68%, de 0,36% e de 0,29% em julho, agosto e setembro de 2022, respectivamente, acumulando uma baixa ou deflação de 1,32% no trimestre. Taxas negativas não são esperadas para os mesmos meses deste ano, mesmo porque o governo voltou a onerar os combustíveis, enquanto o Congresso autorizou os Estados a, de certa forma, recompor a taxação sobre aqueles itens.
  • Os núcleos o IPCA, os indicadores da tal “inflação subjacente” mencionada pelo Copom em nove a cada 10 súmulas, na média, despencaram de 10,48% em 12 meses até junho do ano passado para 6,74% em maio deste ano, numa retração de 3,74 pontos percentuais. E tendem a recuar mais um pouco em junho. Trata-se de uma forma de medir a flutuação dos preços, excluindo-se itens e/ou produtos mais voláteis, preços que sobem demais ou sofrem baixas acentuadas ou ainda considerando apenas produtos mais sujeitos à influência da demanda na economia. Para a política de metas inflacionárias, no entanto, continua valendo o IPCA “cheio” e este tem recuado.
  • Mesmo considerando o índice de 6,74%, persistiria uma taxa básica real de juros, descontada aquela variação, de 6,57%, o que parece ainda excessivo. Caso tomemos a inflação de 4,0% projetada para 2024, os juros básicos estariam atualmente próximos de 9,4% ao ano, debochadamente elevados.
  • O fato é que a atividade econômica tem perdido ritmo aceleradamente, num período mais recente. A produção industrial, que crescia a uma taxa de 6,5% nos 12 meses acumulados até setembro de 2021, na comparação com uma base bastante debilitada pela pandemia, parou virtualmente de crescer e chegou a abril deste ano com recuo de 0,2% também em 12 meses. As vendas do comércio varejista, que haviam acumulado altas de 5,9% no acumulado em 12 meses até julho de 2021, avançaram apenas 0,9% nos 12 meses finalizados em abril deste ano. No varejo amplo, a taxa de variação saiu de 4,8% até fevereiro de 2022 para total estagnação em abril deste ano.
  • No setor de serviços, que passou a registrar índice negativo em abril deste ano, o crescimento acumulado em 12 meses desacelerou de 9,0% em outubro do ano passado para 6,8% em abril deste ano. O total de ocupados, que crescia 10,6% no trimestre março a maio de 2022, diante do mesmo trimestre de 2021, anotou variação de 1,6% no trimestre fevereiro a abril deste ano (comparado a igual período de 2022).
  • A massa salarial real aferida pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNDAC) caiu de R$ 281,623 bilhões no trimestre setembro a novembro de 2022 para R$ 278,821 bilhões no período de três meses encerrado em abril deste ano, numa perda de R$ 2,802 bilhões (1,0% a menos, em termos reais). Numa apuração do BC, a renda nacional disponível bruta das famílias, em valores corrigidos pela inflação e dessazonalizados, na média móvel trimestral, chegou a crescer 11,57% em novembro de 2022, diante de igual período do ano anterior, e avançou 6,52% em abril, depois de recuar 0,78% na comparação com o trimestre encerrado em março deste ano.