BC extrapola seus poderes e atropela o próprio Congresso

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 29 de março de 2023

Quase dois terços da chamada dívida bruta do governo geral, principal indicador escolhido arbitrariamente pelo Banco Central (BC) para definir sua política de juros, guarda quase nenhuma relação com a execução da política fiscal. Dito de forma mais direta, aquela fatia da dívida está sujeita a outra sorte de fatores que pouco têm a ver com o comportamento das despesas primárias, que desconsideram todo o gasto com juros, embora estes desempenhem papel central no avanço do endividamento do setor público brasileiro.

Mas o tamanho da dívida e sua evolução recente continuam sendo utilizados marotamente para sustentar a retórica de descontrole das despesas públicas e fomentar um clima de pânico em relação à “solidez fiscal” do governo, como forma de justificar uma política de juros irracional e deletéria e dar sustentação a reformas ao gosto e feitio dos mercados. A manutenção de taxas de juros reais excessivamente elevadas, com raras inflexões para baixa ao longo de décadas, tem impedido que a economia cresça ao emperrar investimentos e a criação de empregos, concentrando todo o “ajuste” reclamado pelo setor financeiro e seus acólitos sobre as despesas primárias, penalizando os que mais necessitam do Estado e de políticas sociais.

Como observa com argúcia e maior precisão a professora Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, em artigo publicado ontem no site Consultor Jurídico, “a todo tempo, a tese de uma suposta insustentabilidade da dívida pública brasileira tem sido manejada como mecanismo de constrangimento pretensamente neutro e técnico em prol de determinado fluxo de agendas reformistas, cujas oportunidade e conveniência, todavia, apenas competem às instâncias político-democráticas do Estado deliberar”.

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Ainda mais certeira, a procuradora identifica ausência de bases jurídicas e legais na atuação da autoridade monetária, relacionada a “omissões normativas sobre conceitos sensíveis”, a exemplo do que deveria ser considerado como limite para o endividamento público e, mais ainda, de quais indicadores de dívida deveriam ser tomados em consideração. No curso daquelas “omissões”, Élida aponta que a “discricionariedade” do BC tem sido “alargada de forma indevida”. Adicionalmente, relembra ela, “há severos impactos na dívida do manejo das políticas monetária, cambial e creditícia por aquela autarquia”.

Sem base legal

Mais claramente, prossegue a procuradora, “ao invocar como um dos motivos determinantes para a manutenção da taxa básica de juros a percepção de risco sobre revisão das regras fiscais brasileiras e, ato contínuo, sobre a trajetória da dívida pública, o BC extrapola sua competência legal e maneja uma razão frágil e insubsistente”. Entre outras razões, porque o aparato jurídico brasileiro não definiu uma regulamentação sobre o que pode ou não pode ser considerado como “trajetória sustentável da dívida”. Na ausência de uma lei complementar que o faça, acrescenta Élida, “não é permitido a uma instância incompetente para o controle das contas públicas (a autoridade monetária, que pode muito, mas não pode tudo) pretender apontar — ainda que implicitamente — suposto risco de insustentabilidade da trajetória da dívida pública brasileira”. Para reforçar, a autoridade monetária tem invadido terreno do legislador, atropelando o Congresso em sua função de criador de leis.

Balanço

  • Há controvérsias mesmo nas formas de calcular a dívida dos governos, ainda que esse tipo de discussão jamais ocupe muito espaço na grande imprensa e no jornalismo dito “especializado”. A dados de janeiro deste ano, divulgados no final de fevereiro pelo BC, registram uma dívida bruta, na soma de todo o setor público, na faixa de R$ 7,257 trilhões, algo como 73,12% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo dos 86,94% alcançados em dezembro de 2020, sob impacto da pandemia. O fim dos créditos extraordinários abertos para o enfretamento da crise sanitária e o avanço nominal do PIB ajudaram a reduzir o endividamento desde lá.
  • Mas o conceito de dívida bruta considera, por exemplo, créditos e outros haveres de caráter financeiro que não são deveriam ser classificados como dívida e ainda as chamadas “operações compromissadas”, utilizadas pelo BC para regular a oferta de dinheiro na economia (e que, da mesma forma, não têm caráter explícito de dívida).
  • Como se sabe, com reservas próximas de US$ 331,122 bilhões ao final de janeiro deste ano, o Brasil mantinha inalterada sua condição de “credor líquido” no mercado financeiro internacional, o que significa dizer que suas reservas externas superavam o valor da dívida externa. Precisamente, o mundo devia liquidamente ao País algo como US$ 29,791 bilhões em janeiro. Mas, na composição da dívida bruta total, a dívida externa entra sem descontos, desconsiderando-se o tamanho das reservas, que correspondiam a 17,38% do PIB em janeiro passado.
  • Além das reservas, o Tesouro mantinha, em sua conta no BC, um saldo de R$ 1,606 trilhão, perto de 16,18% do PIB, uma espécie de colchão de segurança para ser utilizado na gestão do serviço da dívida quando necessário (quer dizer, para pagar juros e amortizar títulos da dívida). Apenas os dois itens correspondiam, em janeiro, a um terço do PIB (33,56%), somando inacreditáveis R$ 3,331 trilhões em créditos a favor do Estado brasileiro. Descontados apenas esses dois haveres financeiros, a dívida baixaria para 39,56% do PIB. Evidentemente, esse percentual não assustaria ninguém e não poderia justificar os juros astronômicos impostos ao País pelo BC.
  • Em seu artigo, Élida acrescenta outro dado, ao lembrar que as operações compromissadas (venda de títulos pelo BC ao mercado mediante o compromisso de recompra futura) igualmente ajudam a compor a dívida bruta, ainda que funcionem apenas como instrumento para regulara a liquidez no mercado. Também em janeiro, aquelas operações atingiram pouco mais de R$ 1,144 trilhão, correspondendo a 11,53% do PIB.
  • Sua substituição por depósitos voluntários remunerados, como operam as maiores economias do mundo e conforme já prevê a Lei 14.185, de 14 de julho de 2021, ajudaria a reduzir a dívida bruta para 61,59% (embora a mudança, por motivos que o espaço não permite detalhar, tenha impacto sobre a dívida líquida). Somando operações compromissadas, reservas internacionais e a conta única do Tesouro, nada menos do que 45,09% do PIB ou 61,7% da dívida bruta total são determinados por outros fatores que não as despesas primárias.  Isso mostra como os conceitos são fluidos e sujeitos a debate, que continua sendo interditado pelos mercados.